São 16 perguntas, mas poderiam ser muitas mais. O SAPO On The Hop entrevistou, via mail, o autor da trilogia "Deuses de Dois Mundos", PJ Pereira. Ainda com "O Livro do Silêncio" a fazer barulho em Portugal, o autor brasileiro conta-nos que a "propaganda" (publicidade) foi essencial na construção do seu "eu" escritor. "O trabalho criativo é um trabalho, nunca deixa de o ser", confirma. PJ Pereira só precisa de estar sozinho. A mente, depois, faz o resto do trabalho criativo que podemos ler nos seus livros.
1) O primeiro livro da trilogia chama-se "O Livro do Silêncio". As melhores ideias surgem-lhe no nascer da manhã ou o cair da noite?
Ter dedicado tanto tempo no meio da propaganda treina muito sua cabeça para ter ideias na hora que você quer. Sem desmistificar muito, o trabalho criativo é um trabalho. Depois de algum tempo, você senta e faz. Para mim não é a hora que faz diferença, mas estar sozinho. Preciso não ser interrompido para deixar as ideias fluírem. O banho e a hora e meia que passo no carro todos os dias, e as muitas horas que passo num avião toda semana são normalmente onde eu tenho mais ideias, porque são as horas que não tenho o telefone celular nas mãos. O telefone, sim, é um problema. Não só pelas chamadas, mas o vício em saber o que tem no email e nas mídias sociais está roubando o tempo em que antes nós pensávamos sem destino. Isso é muito ruim.
2) No livro vamos encontrando, à medida que se avança, os sentimentos capazes de determinar a vida de pessoas e deuses. Quais eram os sentimentos que mais o invadiam enquanto jovem e que o levaram até hoje?
Eu sempre tive problemas com o poder. Sempre gostei de desafiar quem era mais poderoso do que eu. E por isso mesmo, tinha de estar bem suportado. Quando era moleque, estudei em colégio de padres, e estudava muito e tirava notas boas principalmente para poder desafiar as ordens da escola sem que eles pudessem fazer muito contra mim. Esse livro, em grande parte, é a relação do Newton contra o poder em volta dele. Mas o New é mais fascinado por esse poder. Ele acaba desejando demais, e isso causa uma série de problemas.
3) É supersticioso ou de alguma forma a escrita desta trilogia o levou a ser? Trabalhar uma obra inundada de mistério é exigente a nível racional?
Eu adoro o assunto religião e fé. E sou um geek também. Comecei a trabalhar como programador de computador aos 13 anos. E eu sempre fui meio artista também, escrevia, desenhava... Então o pseudo conflito entre razão e intuição nunca foram parte de mim. Eu acredito em tudo e em nada ao mesmo tempo. Outro dia tive uma conversa longa com uma amiga sobre como nunca acreditei num Deus velhinho no alto da nuvem. Para mim, é mais fácil vê-lo como um algoritmo que as religiões intuitivamente entendem melhor - cada uma parte diferente. Essa obra então foi uma oportunidade de juntar essa visão, uma janela que me dei para ser racional e supersticioso ao mesmo tempo.
4) É um cético por predefinição ou este livro ajudou a expandir o seu pensamento?
Como disse antes, sou cético e acredito em tudo ao mesmo tempo. Para mim, tudo faz sentido, o nada e o tudo; o absoluto e o diverso. Acho mais divertido assim.
5) Sendo um homem das tecnologias, é um escritor que vai beber muito às pesquisas na internet ou continua a ser mais tradicional? Dá prioridade à vivência pessoal e de contacto próximo para ser uma base do que depois escreve e acrescenta com a imaginação?
Eu planejo o livro sozinho, com base no que vivi. Depois vou pesquisar - livros, conversas, para buscar elementos que possam inspirar cenas e comportamentos. Apenas no fim, quando estou digitando (e veja que digo digitando, não escrevendo, porque eu escrevo mesmo quando estou pensando sozinho) eu me permito usar a internet para preencher um dado, um elemento que eu queira que seja mais preciso. Eu sou muito detalhista, sabe? Quando escrevo uma cena num restaurante, quero que o personagem coma algo não só que aquele lugar sirva, mas que ele servisse na época daquele momento no livro. Não seria possível fazer isso sem acesso a tecnologia. Mas para por aí.
6) O treino que o trabalho em publicidade lhe dá foi uma mais-valia não encontrada noutros autores para a cozedura deste "Deuses de Dois Mundos"?
Tive muita sorte em encontrar a propaganda. Porque ela me permitiu me sustentar e me preencher criativamente ao longo da vida toda, para que eu não precisasse fazer essa história nem uma vírgula diferente do que eu gostaria que ela fosse. Eu passei 10 anos procurando um editor. Me diziam que heróis negros não tinham mercado, que eu escrevesse sobre outra coisa. Mas isso não me interessava. Lembro-me de uma conversa com o escritor português Rui Zink, onde ele me falava que algo só merece ser publicado se ou a forma ou a estória fossem muito interessantes, e que um escritor deveria ter noção de que lado estava para poder decidir que rumo dar ao seu trabalho. No caso do "Deuses de Dois Mundos", era a estória que importava. Era como uma missão que eu havia dado a mim mesmo. Ter uma outra fonte de renda, uma que me permitiu manter afiadas minhas capacidades criativas, foi uma bênção. É graças a ela que essa trilogia existe.
7) Na imprensa em geral diz-se bastante que “o bestseller "Deuses de Dois Mundos" é uma das maiores surpresas da nova literatura brasileira”. Como reage a isso?
Acho graça. Parte disso vem do preconceito contra publicitários aqui no Brasil. Para um monte de gente esclarecida que escreve, publica, reporta, trabalha com livros, descontar uma pessoa por causa da profissão é no mínimo uma diminuição de sua própria inteligência. Mas eu não me incomodo. Me acostumei com o fato de ser um renegado da literatura. Escrevi por paixão, a história que eu queria escrever e a despeito de tudo, ela tem sido um sucesso no Brasil e está chegando a vários outros países agora. Isso causa um certo incômodo... mas que se dane, renegados não se importam com o incómodo dos outros, não é mesmo? [risos]
Trailer de "Deuses de Dois Mundos", com banda sonora de Otto e Pupillo (Nação Zumbi), participação especial de Andreas Kisser (Sepultura) e narração de Gilberto Gil:
8) A sua vida profissional tem sido feita no mundo do entretenimento, seja nas séries, nos anúncios publicitários, nos livros. Enquanto escritor tem preocupações com o público para além de o entreter?
A era do entretenimento vazio já se foi, acredito. Ainda existem filmes e livros e séries de TV que não trazem muito além de um pouco de adrenalina. Assim como há os que trazem tanta substância que poucos conseguem acompanhar. Agora olhe para o que há de melhor no mundo do entretenimento: as séries - de TV e de streaming, como o Netflix e Hulu e Amazon... essas são muito mais robustas que o primetime de antigamente. O vazio ou cheio demais (de conteúdo) vai sempre existir, mas não é a única forma de se escrever para o formato que seja. No meu caso, há muita pesquisa sobre a mitologia, há questões delicadas em torno da ideia de religião, há conflitos bem pessoais... mas o tempo todo eu me preocupei em manter o leitor entretido, senão ele não termina a leitura. Não passei anos da minha vida escrevendo uma história para ela ser abandonada no meio.
9) Aborda o mundo do jornalismo (jornalista Newton Fernandes é o protagonista) neste "O Livro do Silêncio" de forma inocente ou pretende também criar uma reflexão à volta da temático do tratamento jornalístico e do papel social?
Não há nada de inocente no jornalismo dentro da visão dele. Muito pelo contrário. Se há uma crítica a alguma coisa nessa obra é a alguns tipos de líderes religiosos e ao jornalismo. O personagem em si vê a carreira como uma carreira e só isso, sua falta de senso de missão é algo que às vezes causa nojo e muitos leitores, mesmo em outras áreas, me dizem que é exatamente isso que esse livro mais os fez refletir. O senso de missão.
10) Ao longo do livro o protagonista não se assume o vilão ou o herói. É, no fundo, um ser humano ambíguo. Acha que não ter o típico formato de história criou interesse à volta do enredo?
Dificultou muito a publicação inicial, isso com certeza. Depois que o livro saiu, as pessoas vieram por causa do tema, que tem aspetos pop interessantes. Depois de ler, no entanto, esse personagem acaba ganhando muita força nas discussões exatamente por ele ser um pouco vilão, herói e vítima. Algumas pessoas se confundem, outras odeiam, outras amam... mas ele não é um personagem que você leia e não construa uma opinião. Como autor, isso me alegra bastante.
11) No fim, há a seguinte citação nos agradecimentos: “Se está a ler este livro hoje, é porque toda esta gente transformou o meu trabalho em algo muito maior”. Prefere que os livros sejam o resultado de um trabalho de equipa ou ainda assim preserva a sua identidade de escrita?
Eis uma pergunta delicada! Colocar um livro no mundo exige o trabalho apaixonado de muita gente que, apenas por dinheiro, faria outra coisa. Mas até as etapas finais da publicação, é um trabalho muito solitário. Como no meu dia a dia na propaganda a atividade criativa acontece em grupo, eu não me incomodo e fico bem confortável com isso, mas confesso que apreciei a solidão criativa acima de qualquer outro aspecto de escrever meus primeiros livros.
12) As imagens que vai criando neste livro são fortes e agarram o leitor. Esse choque foi propositado?
A mitologia na qual me baseei é muito forte, não a estaria retratando bem se fosse sem sal. Além dessa intenção, no entanto, eu escrevo para entreter. Essas cenas de mais impacto ajudam a marcar, fazer a página virar, ajudam a manter o livro sendo falado dias, semanas depois. Faz muito bem para o ego. [mais risos!]
13) Foi fácil para si colocar-se na pele destas personagens mitológicas, com culturas e costumes específicos, e retratar isso nos livros?
Esses deuses africanos têm uma natureza muito humana, mas mais radical, mais dramática que a nossa. Compô-los como personagens foi muito divertido. O primeiro livro, aliás, é apenas uma apresentação, é no segundo que eles se desenvolvem mesmo. Mas no terceiro, que estou terminando de escrever, eles se revelam de verdade. Porque eles se tornam deuses e sem as amarras do corpo e da vida humana, podem deixar alguns traços aparecerem com ainda mais força.
14) Sendo este primeiro livro o primeiro tomo desta trilogia, os próximos dois contêm em si mais aventura e menos descrição?
Não exatamente. O primeiro introduz o universo, as regras sociais, os personagens principais. No segundo eles se soltam mais e fazem o que têm que fazer. No segundo tomo, portanto, o universo é menos importante e os personagens muito mais. No terceiro eu trabalho a relação entre eles, especialmente a relação entre os homens e as mulheres. Então a trilogia tem em cada tomo uma função dentro da análise desse mundo mitológico.
15) Já finalizou o seu último livro da trilogia? Disse numa entrevista que era uma história “muito mais sombria que os dois anteriores. Será um livro mais denso”. Sabemos o quão importante é o final de uma trilogia para os fãs. Que tipo de final vai ser este?
O final na verdade é o início de tudo. Não vou contar muito porque pode estragar a leitura mas posso adiantar o seguinte: um dos elementos da estória que mais gosto é um rio circular, que começa e termina em si mesmo. E é chamado "O Rio do Tempo". Daí você imagine onde podemos chegar...
16) Notícias mais recentes afirmam que já está tudo negociado para levar esta trilogia ao cinema, à BD e à TV. É uma obra adaptável a vários formatos?
Ela foi escrita, na minha cabeça mesmo, como uma obra visual. Eu sempre quis trazê-la às telas. Há uma produtora trabalhando nisso agora, escrevendo roteiros, experimentando. A vontade maior hoje é fazer um filme no Brasil e em torno disso lançar outras formas de explorar a estória, como jogos de RPG, por exemplo. Mas eu me envolvo pouco nisso. Estou totalmente focado na minha estória e nos meus personagens. Deixo os profissionais tratarem do resto.
Fotos: Leo Neves
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