"A série vai ser comparada a 'Fleabag', ao [filme] 'Deadpool', mas parte da essência da She-Hulk na banda desenhada é o facto de ela quebrar a quarta parede. Fala com os leitores, fala com os argumentistas, assume o controlo da sua própria narrativa", sublinha Kat Coiro numa conversa com a imprensa por Zoom na qual o SAPO Mag esteve presente.
A realizadora e produtora executiva da nova série da Marvel insiste com colocar logo os pontos nos is. "Adoro a 'Fleabag', sou uma grande fã, mas a She-Hulk tem quebrado a quarta parede muito antes de 'Fleabag' ser sequer uma ideia", assinala a norte-americana, antes que as primeiras críticas à aposta do Disney+ sugerissem influências da comédia britânica criada por Phoebe Waller-Bridge.
Afinal, se houve algo que raramente faltou à versão da banda desenhada de Jennifer Walters, mais conhecida como She-Hulk, foi personalidade. Embora numa fase muito inicial, no princípio dos anos 1980, a advogada e super-heroína fosse pouco mais do que um derivado feminino do alter ego do seu primo Bruce Banner, rapidamente conquistou um espaço próprio pelo temperamento bem menos instável do que o de Hulk, por aceitar a sua transformação e se sentir ainda melhor na sua nova pele verde esmeralda ou por não dispensar doses generosas de humor nas suas aventuras.
Depois de missões ao lado dos Vingadores ou do Quarteto Fantástico, voltou a brilhar a solo numa revista criada por John Byrne, na viragem para os anos 1990, naquela que foi provavelmente a sua fase mais icónica e que introduziu elementos meta-referenciais nas suas histórias. E é de parte desse legado que "She-Hulk: A Advogada" nasce, mesmo que os primeiros episódios, apesar de simpáticos, não sejam tão experimentais ou delirantes como a BD.
"E se não tivéssemos de ter medo?"
"Ela foi sempre parte do meu mundo. Lembro-me de a ter visto na capa de uma revista de banda desenhada quando era criança e de ter ficado muito entusiasmada com a sua presença, poder e força", recorda Kat Coiro ao SAPO Mag. "A série é uma reinvenção e uma reimaginação que nasce da essência da personagem, alguém que não tem medo de ocupar muito espaço nem de ser vista. É a história de uma mulher que está habituada a desaparecer na pele de Jennifer Walters mas que ganha esta dimensão".
A realizadora de seis dos nove episódios da primeira temporada acrescenta que a série "é sobre como cada um muda face à forma como é visto pelo mundo. E embora a consciência da Jennifer se mantenha intacta quando ela se transforma em She-Hulk, passa a ser vista de forma diferente devido ao seu tamanho, à sua força, à sua cor".
"She-Hulk: A Advogada" também se destaca por ser uma das poucas apostas protagonizadas por uma mulher num universo tendencialmente masculino. "À medida que a série avança, abordamos a forma como a raiva é vista nas mulheres em comparação com os homens. Muitos super-heróis masculinos têm autorização para atingir o nível 10 de raiva, mas o que acontece quando uma super-heroína atinge o 5? Vejam e descubram", sugere Kat Coiro.
"E se não tivéssemos de ter medo? E se pudéssemos dizer como nos sentimos verdadeiramente? As mulheres não se podem dar a esse luxo", defende. "Qualquer mulher que já tenha sido abordada por um homem num bar ou andado sozinha na rua à noite deseja poder ser transformar-se na She Hulk", diz ainda, sublinhando que "a produtora da Marvel Wendy Jacobson fez questão de contar esta história com um olhar feminino". Assim, além de Coiro, os créditos da série incluem Jessica Gao, a criadora, e Anu Valia, que dirigiu três episódios.
Curiosamente, o facto de as aventuras de She-Hulk na BD terem sido assinadas maioritariamente por homens - de Stan Lee a Roger Stern ou ao supracitado John Byrne, passando por Dan Slott e Charles Soule - não a impediram de se tornar uma das super-heroínas mais progressistas e feministas dos comics. Individualizou-se do gigante verde do qual deriva, nunca foi definida em função de um interesse amoroso, protagonizou um título com vários volumes, foi requisitada para muitas equipas e manteve um círculo profissional e pessoal tão multidimensional como agitado - incluindo diversos relacionamentos amorosos ao longo dos anos e uma vida sexual com casos de uma só noite, situação praticamente inédita em super-heroínas do seu tempo e em relação à qual "She-Hulk: A Advogada" promete não passar ao lado.
Mulher moderna (e convidados)
"Esta é uma série de super-heróis com elementos de ficção científica, mas é verdadeiramente sobre uma mulher na casa dos 30 que equilibra a carreira, a vida amorosa e a família. O que me interessa é o fator humano, é isso que distingue a série e que a torna refrescante", descreve Kat Coiro. "Gosto de personagens bem desenhadas com as quais nos possamos relacionar de alguma forma. Nunca escolhi projetos a partir do género: fiz comédias, dramas, comédias românticas", aponta a realizadora que já dirigiu episódios de séries como "Nunca Chove em Filadélfia" "Brooklyn Nine-Nine" ou "Uma Família Muito Moderna" e que também assinou filmes como "And While We Were Here" ou "Marry Me", este último estreado este ano.
Mas além da equipa criativa, há outra mulher indissociável de "She-Hulk: A Advogada": Tatiana Maslany, cujo currículo no pequeno ecrã já se mostrou amplamente proveitoso nas interpretações camaleónicas da série "Orphan Black". "A partir do momento em que foi escolhida, tornou tudo mais fácil porque é uma atriz muito talentosa capaz de equilibrar o humor, a humanidade, o 'pathos' e conjugar as questões técnicas que implicam interpretar uma personagem CGI", explica. "Sabemos pelo percurso da Tatiana que é capaz de expressar versões muito diferentes dela própria e emoções muito diferentes", garante. E vendo os primeiros episódios, é difícil não concordar: a canadiana encontrou mais uma vez a atitude e tom certos para uma personagem, emergindo como um dos trunfos óbvios da série.
Kat Coiro diz estar particularmente orgulhosa das cenas entre Maslany e Mark Ruffalo, ator que encarna Bruce Banner/Hulk. A relação entre a dupla domina o primeiro capítulo e "a sua química motivou cenas que não estavam planeadas", conta a realizadora. "Não se pode dirigir química. Aproveitámos a espontaneidade entre a Tatiana e o Mark para o primeiro episódio. Para mim, grande parte da comédia é deixar que as coisas se desenvolvam, permitir que certos momentos aconteçam, encorajar o improviso, o que pode ser muito desafiante numa série com tanto CGI, na qual temos de pensar em tudo", nota.
Hulk é o primeiro, mas não o último dos muitos rostos familiares do Universo Cinematográfico Marvel que vão poder ser vistos em "She-Hulk: A Advogada". As presenças de Emil Blonsky/Abominável (Tim Roth), Wong (Benedict Wong) e Matt Murdock/Demolidor (Charlie Cox) também já estão asseguradas, e advinham-se outras a caminho. "Uma das coisas mais divertidas desta série foi ver estas personagens adaptarem-se a um novo género que é muito mais ligeiro. Foi um ajuste para todos os atores porque é um tom substancialmente diferente", refere Coiro. "O género só existe na ficção: na vida real, temos dias cómicos e dias dramáticos. E aqui permitimos que personagens até aqui predominantemente dramáticas puxassem pelos músculos cómicos". A partir desta semana, a comédia musculada (e esverdeada) chega ao Disney+ todas as quintas-feiras, em doses de trintas minutos por episódio.
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