Numa altura em que parece não haver saga que não regresse, seja no pequeno ou no grande ecrã, era só uma questão de tempo até que a personagem surgida nos policiais escritos por Erle Stanley Gardner também tivesse direito a voltar à ribalta.
"Perry Mason", a nova aposta da HBO Portugal, estreia esta segunda-feira no serviço de streaming e reencontra o perspicaz advogado de defesa, embora numa versão muito distante daquela que os livros, os programadas de rádio, os filmes, os telefilmes e as séries anteriores tornaram icónica.
A primeira temporada, de oito episódios, recua até às origens do protagonista, quando este tinha outra atividade numa Los Angeles dos anos 1930 - cidade a prosperar durante a Grande Depressão e marcada pelo "petróleo, jogos olímpicos, filmes com som e fervor evangélico", avança a HBO Portugal. Aqui, Perry Mason é um detetive privado barato que enfrenta uma crise pessoal e profissional - sendo assombrado pelo alcoolismo, por um casamento desfeito e por memórias da guerra em França -, além de um homem sem a elegância e sofisticação às quais viria a ser associado.
Entre 1957 e 1966, ao longo de nove temporadas e 271 episódios, o advogado de defesa revelou-se quase sempre infalível nos casos que enfrentava semanalmente (não chegou a perder meia dúzia das centenas que lhe passaram pelas mãos).
A popular série da CBS, que também teve sucesso considerável em Portugal, através da RTP, adaptou boa parte das mais de 80 investigações narradas nos policiais surgidos nos anos 1930 (e que continuariam até à década de 1970).
A esses desenlaces, invariavelmente felizes e fechados, sucede uma nova versão declaradamente mais turva e moralmente ambígua, desde logo anunciada com a investigação do caso de um bebé raptado e assassinado - e a abrir a porta para acessos de violência gráfica que incluem cenas gore. Sinais dos tempos e da chamada era dourada da televisão, mais condizente com protagonistas conturbados e que nem sempre operam pelos meios mais legítimos.
O novo ator principal vem, de resto, de uma série elogiada por ter diluído maniqueísmos fáceis nos últimos anos. Através de Philip Jennings, o espião russo de "The Americans", Matthew Rhys atingiu a fase área do seu percurso (na qual ganhou o Emmy de Melhor Ator de Série Dramática) e tem em "Perry Mason" uma prova de fogo: dar corpo a uma figura que a esmagadora maioria dos espectadores associa automaticamente a Raymond Burr, protagonista da primeira versão televisiva e de dezenas de telefilmes da NBC, apesar de vários atores terem encarnado o advogado de defesa - tanto nos filmes dos anos 1930 como na série de má memória "The New Perry Mason", da década de 1970.
Ao leme da nova aventura estão Ron Fitzgerald e Rolin Jones, argumentistas de créditos firmados e o segundo um dramaturgo igualmente premiado. Ambos assinaram episódios das séries "Erva" e "Friday Night Lights", Jones também escreveu para "Boardwalk Empire" ou "The Son", e à equipa criativa juntam-se os realizadores Tim Van Patten ("The Wire", "Os Sopranos", "A Guerra dos Tronos", "Deadwood") e Deniz Gamze Ergüven (cineasta franco-turca, autora do aconselhável drama adolescente "Mustang"). Entre os produtores executivos conta-se Robert Downey Jr., ator inicialmente considerado para assumir o papel principal.
No elenco, além de Rhys, destacam-se John Lithgow (Elias Birchard "E.B." Jonathan, um advogado em dificuldades e um empregador semi-regular de Mason), Juliet Rylance (Della Street, a secretária criativa e jurídica da E.B. Jonathan), Tatiana Maslany (a Irmã Alice McKeegan, líder da Assembleia de Deus), Chris Chalk (o polícia Paul Drake) e Shea Whigham (Pete Strickland, contratado por Mason para o ajudar nas investigações).
Entre a descaracterização e o deslumbre visual
As primeiras reações à versão 2020 de "Perry Mason" têm sido díspares, embora o elenco, a recriação da época e os valores de produção sejam maioritariamente louvados. O The Hollywood Reporter aponta que a série "parece inspirada por muitos e diferentes personagens e franchises indeléveis, mas até aos últimos episódios, mal parece uma história de 'Perry Mason'. (...) Por isso torna-se apenas um nome, o que é confuso quando não significa nada para o público jovem, enquanto que os desvios da fórmula vão repelir os espectadores (mais velhos)".
A Variety também critica que esta é uma nova proposta de "algo que já vimos noutros lados e muitas vezes mais bem feito", lamentando que o protagonista se tenha transformado em mais um anti-herói dos dias da TV "de prestígio".
Já a Indiewire considera esta "uma das séries mais belas de sempre" e um crime de contornos noir "feito para quem aprecia o género - ou simplesmente para quem aprecia formas de contar histórias elaboradas, detalhadas e consequentes".
O entusiasmo é partilhado pela Slant Magazine, que assinala o equilíbrio de cinismo e otimismo e "o nevoeiro complexo de decadência e desesperança", além da forma hábil como a série coloca questões sobre "religião, raça, sexualidade e papéis de género".
A partir desta segunda-feira, os espectadores, sejam adeptos da velha guarda ou novos fãs em potência, ficam convidados a tirar as suas próprias conclusões, sempre ao ritmo de um episódio por semana - neste aspeto, e apesar da mudança da TV para o streaming, a tradição ainda é o que era.
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