O enredo tem no seu centro narrativo Amy (Rosamund Pike) e Nick (Ben Affleck), um casal que vive numa pacata cidade no centro da América quando a crise empurrou estes dois jornalistas para fora de Nova Iorque. No quinto aniversário do matrimónio, Amy desaparece e inicia-se uma busca incessante pelo seu paradeiro e igualmente uma selvática perseguição dos média, em busca de uma história parcial e acusatória, a Nick.

Esta é uma das perspicazes nuances da obra: a satirização da loucura mediática e a opinião pública que não olha a fins na intrusão em prol do espectáculo mórbido na televisão. Os flashbacks e o dispositivo de narrador interveniente, a duas vozes, são também elementos que permitem contextualizar a relação do casal, e especialmente definir e manipular deliciosamente o espectador na descoberta dos verdadeiros Nick e Amy.

O espetador pode aguardar neste fantástico «thriller» emoções fortes numa autêntica monta-russa com «twists» inesperados, drama vigoroso e doses refinadas de humor negro. Mas a história é muito mais do que o suspense em torno de uma mulher que desaparece da sua casa sem deixar rasto: estamos perante um sublime tratado sobre a deterioração do matrimónio e o cair da cortina de uma relação que é uma fachada de uma família perfeita.

As performances de Ben Affleck e Rosamund Pike estão em ponto caramelo. O primeiro por ter sofrido pessoalmente uma perseguição dos «media» americanos (a separação de Jennifer Lopez), que o fez certamente conectar com o seu personagem. Ele também teve de ser versátil e expressivo na dualidade entre o carácter sedutor e o conformista. Por sua vez, Rosamund Pike tem a beleza e uma aura de mistério em seu redor que assentou que nem uma luva à misteriosa Amy. Destaque ainda para o restante elenco secundário com performances fortíssimas a toda à linha.

«Em Parte Incerta» conta com toda a sofisticação de David Fincher e a sua equipa regular de técnicos que o acompanham há vários anos para criar uma atmosfera propícia ao desenvolvimento da narrativa que observa o casamento, a cultura das celebridades e a criação de personalidades que satisfazem o próximo, mas distanciam-se cada vez mais da sua verdadeira entidade.

Este é um «thriller» com várias tonalidades que é um convite, no seu âmago, ao debate sobre a essência das nossas próprias relações e a desmistificação das imagens públicas e privadas. «Em Parte Incerta» é uma das melhores estreias de 2014, concebido para todos aqueles que desejam ser surpreendidos numa sala de cinema.

JORGE PINTO

4 estrelas

Revista Metropolis