A história do cinema é uma realidade sempre em flutuação, principalmente a dos seus primórdios, em que muitos filmes desapareceram ou tiveram distribuição muito limitada. Por isso, mais que designar os «primeiros» neste ou naquele campo, o mais correcto a maioria das vezes será aplicar a expressão «o mais antigo que se conhece». Vem isto a propósito de uma descoberta revelada ao público no
Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy, a decorrer entre 8 e 13 de Junho: há vários filmes de animação, todos de um mesmo autor,
Alexander Shirayev, que precedem no tempo aquele que era até agora tido como o primeiro filme animado,
«Fantasmagorie», de 1908, realizado pelo francês
Emile Cohl.
As origens do cinema animado, como as de qualquer forma de expressão artística, são muito disputadas. Embora os efeitos de trucagem venham desde as origens do cinema, tendo logo sido muito trabalhados por
Georges Méliès, e apesar de ter havido desde o início muitos apontamentos de cinema animado aqui e ali, é (ou era...) relativamente consensual que fora «Fantasmagorie» o primeiro filme de animação por inteiro, ou seja, o primeiro que não se limitava a usar os efeitos animados como mero truque visual em complemento ou em relação à imagem real.
Pois bem, tudo indica que o russo Alexander Shirayev antecedeu Cohl nesse sentido por alguns anos. E que esse facto foi descoberto há 10 anos mas ninguém ligou. Em 1995, mais de 50 anos após o falecimento de Shirayev, o historiador e documentarista
Viktor Bocharov descobriu e recuperou na medida do possível vários filmes em 35 mm e alguns em 17,5 mm, que utilizou na criação do documentário
«Shirayev: A Belated Premiere» que, apesar de ter sido terminado em 2003, teve escassa projecção até à data. À excepção do
Festival de Cinema Mudo de Pordenone, em Itália, foi este ano em Annecy que mereceu visibilidade mais alargada e que a comunidade da animação internacional do cinema de animação entrou em contacto com a obra do cineasta, tomando nota de que era preciso alterar as histórias do cinema animado tal como tinham sido escritas até à data.
Shirayev era um dançarino muitíssimo célebre e reputado do ballet russo na viragem para o século XX, que, até ao seu falecimento, em 1941, se distinguiu também como professor e teórico da coreografia, com obra importante publicada. Era um nome que já estava na história da dança por direito próprio, mas que agora entra na do cinema por outra via: é que Shirayev começou a registar e conservar os movimentos dos seus colegas bailarinos numa câmara amadora de 17,5 mm. E não contente com isso, resolveu desenhar em papel os vários passos e movimentos de dança para auxiliar os dançarinos, que cedo percebeu que podiam ser fotografados e projectados, para dar a ilusão do movimento, fazendo assim as suas primeiras animações.
Mas isso nem foi o essencial na obra filmada de Shirayev: logo a seguir, e aplicando o mesmo príncipio, ele criou marionetas articuladas, feitas em pasta de papel, com as quais conseguiu uma reprodução inacreditavelmente fiel e fluída do movimento humano, como ferramenta de trabalho para auxílio dos colegas.
Assim, ele criou vários filmes sempre com o mesmo dispositivo mas cada vez mais engenhosos e ambiciosos: o enquadramento é sempre o palco de um teatro, em que as marionetas dançam uma qualquer melodia, chegando mesmo a estar mais de dez figuras em movimento coreografado no mesmo espaço. Tratam-se, portanto, de filmes com princípio, meio e fim, e com um objectivo expressivo e artístico que estava longe de se limitar aos efeitos de trucagem.
Embora os filmes não sejam datados, todas as pesquisas apontam para que tenham sido feitos
entre 1904 e 1906, portanto, pelo menos dois anos antes de «Fantasmagorie». E muito antes de 1911, data em que estava assinalado o primeiro filme de animação em
«stop-motion», assinado pelo russo
Ladislaw Starewicz, data que terá agora de ser corrigida, já que foi a essa técnica que Shirayev recorreu.
Neste momento, contra o seu caso como pioneiro, o dançarino e animador russo terá apenas o facto dos seus filmes não terem tido projecção pública (tanto quanto se sabe) e terem sido concebidos para visionamentos relativamente restritos, o que continua a dar a Cohl a relevância, porventura mais importante, da sua obra ter sido a que mais influência teve na origem do «medium». De qualquer forma, e até pela sua invulgar qualidade, os filmes de Shirayev deverão agora começar a integrar as histórias do cinema, e em lugar pioneiro.
O estúdio britânico
Aardman, responsável pela dupla
Wallace e Gromit, foi instrumental no financiamento do restauro dos filmes de Shirayev, que deveriam ter sido apresentados em Annecy por aquele que os descobriu e revelou ao mundo, o próprio Bocharov. Só que, infelizmente, o historiador, que tanto queria dar a conhecer a sua descoberta, não pôde estar presente porque não percebeu que o seu passaporte caducava um dia antes da viagem de avião para o Festival...
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