Em “Ciao Ciao”, logo a abrir, a mãe da protagonista estabelece: “fazer dinheiro é tudo o que importa nestes dias”.
Se tal constatação não surpreende ninguém no Ocidente há muito, muito tempo, os cineastas chineses não parecem conformar-se. Ou, pelo menos, não cessam de registar com perplexidade o movimento alucinante da sua sociedade rumo ao individualismo capitalista.
O segundo trabalho do realizador Song Chuan narra a história da personagem que dá nome ao filme – vivida pela atriz Liang Xueqin. Para quem anda na busca de um lugar ao sol, o seu movimento é estranho: ela parte da cidade para a província, onde vai passar um tempo com os pais. Não há como resultar: ela entedia-se – até que começa a ver novas possibilidades, afetivas e materiais, aqui tudo aparece misturado, na atração por um local.
A escolha não é boa: Li Wei (Zhang Yu) é filho de um empresário bem-sucedido, mas gasta (muito) tempo e dinheiro em jogo, bebida e prostitutas. Vai revelar, no entanto, uma qualidade: apaixona-se genuinamente por Ciao Ciao.
Nenhuma personagem contribui para um retrato humano tão idílico quanto as paisagens verdejantes que os enquadram: da mãe adúltera ao pai tão inútil quanto ganancioso da rapariga, Song Chuan passa longe do discurso de que a “cidade corrompe”. Na pior das hipóteses, o capitalismo é que o faz – e, calor humano, só em algum lugar do passado…
Chuan utiliza a música eletrónica para criar um permanente desconforto entre os mundos urbano e rural; mais notório é o erotismo e a nudez retratados com desinibição invulgar (para o cinema chinês) no calor do verão. Será mais um sinal dos tempos…
Deserto de plástico
Também em competição está “El Mar La Mar”, ensaio contemplativo da dupla norte-americana J.P. Sniadecki e Joshua Bonnetta. O documentário aborda os mortos da travessia do deserto de Sonora – mas sem um registo tradicional, onde histórias são relatadas em “off” sob fundo negro e uma série de “slides” demonstra uma preocupação tão estética quanto social.
Sexo e vísceras… ou nada disso
Se a ideia da secção Boca do Inferno é trazer “sexo e terror”, nem “I’m not Your Serial Killer” nem “The Alchemist Cookbook”, ambos vindos da edição do South by Southwest do ano passado, trazem muito deles. O que, em si, não é bom nem mau.
No primeiro filme, o protagonista é o adolescente John Wayne Cleaver (Max Records) - ”merecedor” (acredita ele) de um estranho diagnóstico: é um assassino em série em potencial. Fascinado por mortos e cadáveres, trata-se com um psicólogo e cerca-se de uma série de regras para não cair em tentação.
Mas nem todos são como ele: de repente, na pequena cidade onde vive, alguém começa a cometer crimes e, na linha do “meu vizinho é um assassino”, nesta história onde a autoridade está ausente cabe a ele resolver o “problema”.
“I’m not a Serial Killer” é uma adaptação de um livro de sucesso de Dan Wells, cuja saga que inaugurou foi classificada, para efeitos de promoção, como para o público “jovem adulto”.
A categorização dá para o filme: o cineasta irlandês Billy O’Brien não fez uma obra para fãs de “Crepúsculo”. Isto não quer dizer que vísceras escorram livremente pelo ecrã – mesmo lidando com um serial killer “especializado” nisto mesmo: arrancar órgãos. Quanto a sexo, nem vê-lo: a menina que anda a rondar o “projeto de assassino” não ganha nem uma piscadela.
Sempre operando no limite da credibilidade, “I’m Not a Serial Killer”, que conta com participação do veterano Christopher Lloyd (“Regresso ao Futuro”), aposta grande num final… para dizer o mínimo, “inusitado”.
A receita da bizarrice
Mais bizarrice fica reservada para “The Alchemist Cookbook”, a história de um eremita, Sean (Ty Hickson), a viver num roulote numa floresta. Nem o seu único visitante ocasional (Amari Cheaton), nem o espectador percebem que coisas andará ele a fazer.
O que se verifica é que, no meio da tralha, Sean não parece jogar com o baralho todo: quando não está no lago a pescar e a desancar um ente invisível, dança com o gato com as luzes de Natal penduradas sobre si.
Mas as suas pesquisas ganham outros contornos quando um problema qualquer com o seu “manual de alquimista” o faz mexer com as forças erradas… que mais valiam estarem quietas.
Obra do argumentista/realizador Joel Potrykus, que já passou pelo IndieLisboa com propostas semelhantes, em “The Alchemist Cookbook” a receita mistura minimalismo, humor e bruxaria - enquanto aponta para muitas direções sem tomar realmente nenhuma e deixando o espectador perplexo no meio de uma encruzilhada de pistas falsas.
Comentários