No início de outubro, numa entrevista à revista britânica Empire, Martin Scorsese rejeitou os filmes da Marvel como cinema, comparando-os a "parques de diversão" onde os atores se safavam como podiam.
Como seria de esperar, a opinião gerou reações inflamadas de fãs dos filmes de super-heróis e também críticas dentro da indústria cinematográfica, mas o lendário realizador de "Taxi Driver", "O Touro Enraivecido" e "Tudo Bons Rapazes" regressou e expandiu o tema num longo artigo de opinião esta terça-feira (5) no jornal The New York Times, no Dia Mundial do Cinema.
Rejeitando que a sua opinião fosse um insulto ou "ódio" à Marvel, Martin Scorsese escreve que muitas sagas de cinema são feitas por "pessoas de talento e mérito artístico considerável" e o resultado pode ser visto no grande ecrã.
"O facto de que os filmes em si não me interessam é uma questão de gosto pessoal ou temperamento", salienta, reconhecendo que, se fosse mais jovem, talvez ficasse entusiasmado com eles e até tentasse fazer um, mas "cresci quando cresci e desenvolvi um sentido de cinema, do que eram e do que podem ser, tão distante do universo Marvel como nós na Terra estamos do sistema Alpha Centauri".
"O cinema era sobre revelação, revelação estética, emocional e espiritual. Era sobre personagens, a complexidade das pessoas e das suas naturezas contraditórias e às vezes paradoxais, a maneira como elas podem magoar e amar-se umas às outras e de repente confrontarem-se com elas mesmas", continua a reflexão.
Scorsese evoca o exemplo do cineasta Alfred Hitchcock (1899-1980), em que se pode argumentar que era o seu próprio "franchise", no sentido em que cada novo filme era "um evento".
O realizador recorda que existe quem defenda que esses filmes tinham muitas semelhanças e que "talvez isso seja verdade, o próprio Hitchcock questionava-se sobre isso", mas defende que "as semelhanças dos atuais filmes das sagas é outra coisa. Muitos dos elementos que definem o cinema como o conheço estão nos filmes da Marvel. O que não está é a revelação, o mistério ou genuíno perigo emocional. Nada está em risco. Os filmes são feitos para satisfazer um conjunto específico de exigências e são projetados como variações num número finito de temas".
"São sequelas em nome, mas 'remakes' em espírito e tudo neles é oficialmente sancionado porque não pode realmente ser de outra forma. Essa é a natureza das sagas modernas de cinema: estudadas no mercado, testadas com público, avaliadas, modificadas, revestidas e remodeladas até estarem prontas para o consumo", continua antes de salientar que são o oposto dos filmes de cineastas como Paul Thomas Anderson, Claire Denis, Spike Lee, Ari Aster ou Kathryn Bigelow, em que "sei que vou ver algo absolutamente novo e ser levado a áreas de experiência inesperadas e talvez até inomináveis".
Scorsese diz que o seu "problema" com esta situação é que, "em muitos lugares deste país e do mundo, os filmes de sagas são agora a escolha principal" para quem quer ver algo no grande ecrã.
"É um período perigoso na exibição de filmes e existem menos cinemas independentes do que nunca. A equação mudou e o 'streaming' tornou-se o principal sistema de fornecimento [de conteúdos]. Ainda assim, não conheço um único cineasta que não queira preparar filmes para o grande ecrã, para serem projetados perante público nos cinemas. Isso inclui-me a mim e estou a falar como alguém que acabou de fazer um filme para a Netflix", explicando que gostaria que "O Irlandês" estivesse em mais salas e por mais tempo, mas "a verdade é que, na maioria dos multiplexes, as salas estão preenchidas com filmes de sagas".
"E se me disserem que é simplesmente uma questão de procura e oferta e dar às pessoas o que querem, vou ter de discordar. É uma questão do ovo e da galinha. Se se der às pessoas apenas um tipo de coisa e vender incessantemente apenas um tipo de coisa, claro que vão querer mais disso", argumenta.
Scorsese recorda que a indústria cinematográfica mudou em todas as frentes nos últimos 20 anos, "mas a mudança mais ameaçadora aconteceu pela calada da noite: a eliminação gradual, mas sistemática, do risco. Hoje, muitos filmes são produtos perfeitos fabricados para consumo imediato. Muitos deles são bem feitos por equipas de pessoas talentosas. Mesmo assim, falta-lhes algo essencial ao cinema: a visão unificadora de um artista específico. Porque, é claro, o artista específico é o maior factor de risco de todos".
"Infelizmente, a situação que temos agora é a de dois campos distintos: há entretenimento audiovisual mundial e cinema. Eles ainda se sobrepõem de tempos em tempos, mas isso está a tornar-se cada vez mais raro. E receio que o domínio financeiro de um esteja a ser usado para marginalizar e até menosprezar a existência do outro. Para quem sonha em fazer filmes ou está apenas a começar, a situação neste momento é brutal e inóspita para a arte. E o simples ato de escrever estas palavras enche-me de tristeza terrível", conclui o artigo.
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