Cumprindo as expectativas, "Pobres Criaturas" foi grande vencedor da 80.ª edição do Festival de Veneza, recebendo o Leão de Ouro atribuído este sábado à tarde pelo júri presidido pelo cineasta Damien Chazelle ("La La Land") e que incluía, entre outros, as cineastas Jane Campion, Mia Hansen-Løve e Laura Poitras, a vencedora do ano passado.

Com uma comédia provocadora "feminista e disparatada" descrita pelos críticos como um "clássico instantâneo" logo ao segundo dia do festival, a 1 de setembro, e uma fortíssima candidatura aos próximos Óscares, o cineasta grego Yorgos Lanthimos, de 50 anos, repete o prémio que recebera em 2018 com "A Favorita", com o mesmo argumentista (Tony McNamara) e a mesma atriz: Emma Stone dá uma interpretação extrovertida de uma Frankenstein em versão feminina e feminista que é descrita como a melhor de uma carreira que já inclui uma estatueta dourada por "La La Land".

Yorgos Lanthimos recebe o prémio das mãos de Roberto Cicutto, presidente do festival

O filme, que a distribuidora Searchlight Pictures (da Disney) lançará nos EUA a 8 de dezembro e só deverá chegar a Portugal nas primeiras semanas de 2024, começa com um excêntrico cirurgião (Willem Dafoe), numa Londres do século XIX e imaginária, que pesca o cadáver de uma grávida que se afogou e consegue substituir, com sucesso, o cérebro da mãe pelo do bebé que ela carregava no seu ventre.

Segundo o consenso da crítica, o que acontece a partir daí é uma comédia ácida e desenfreada, de enredos basicamente sexuais, nas mãos de uma Emma Stone que não teme nada e nem ninguém, já que é uma recém-nascida no corpo de uma jovem e bela mulher e onde ainda se destaca Mark Ruffalo como um sofrido amante que acaba por ficar louco.

Adaptada do romance homónimo de Alasdair Gray, publicado em 1992, "Pobres Criaturas" é uma longa-metragem visualmente barroca, com cenários sumptuosos que reproduzem livremente várias capitais no final do século XIX (Lisboa, Londres, Paris, Atenas...), durante o périplo enlouquecido dos protagonistas por metade da Europa.

Cailee Spaeny com o Prémio de Melhor Atriz

Se Emma Stone, que não esteve em Veneza por causa da greve dos atores de Hollywood, emerge como uma grande favorita ao Óscares, o mesmo acontece com Cailee Spaeny, de apenas 25 anos, que recebeu o prémio de Melhor Atriz pela interpretação de Priscilla Presley em "Priscilla", o novo filme de Sofia Coppola.

Já Peter Sarsgaard teve a maior distinção da carreira aos 52 anos com a Taça Volpi para Melhor Ator por "Memory", um drama envolvente que aborda a demência do realizador mexicano Michel Franco onde também participa Jessica Chastain e visto no penúltimo dia do festival.

Uma das poucas estrelas que foi ao Lido por causa da greves, beneficiando de autorização especial, Sarsgaard aproveitou para alertar que a inteligência artificial, um dos temas quentes das negociações nos EUA, é “aterrorizador” para o cinema.

"Todos aqui concordam que um ator é uma pessoa e um argumentista é uma pessoa, mas parece que não conseguimos. E isso é assustador porque este trabalho é sobre as relações”, disse no seu discurso.

Palmarés recompensou os filmes mais elogiados, com uma ausência surpreendente

Peter Sarsgaard, Melhor Ator

Apenas os filmes independentes, fora do circuito dos grandes estúdios de Hollywood, obtiveram isenções especiais do poderoso sindicato SAG-AFTRA para permitir que os seus protagonistas fossem ao Lido promover os filmes, como aconteceu com Peter Sarsgaard e Jessica Chastain, Cailee Spaeny e o colega Jacob Elordi, ou Adam Driver ("Ferrari").

Mas, em geral, Veneza resistiu ao impacto da greve de atores e argumentistas de Hollywood, com muitas estrelas americanas ausentes, mas com salas esgotadas e uma forte competição artística que fizeram esquecer rapidamente os filmes de três cineastas veteranos, Woody Allen, Roman Polanski e Luc Besson, que participaram no festival apesar dos escândalos sexuais que os acompanham há muitos anos.

Na secção competitiva formada por 23 filmes, o segundo prémio, o Leão de Prata - Grande Prémio do Júri, foi para "Evil Does Not Exist", o novo trabalho do realizador japonês Ryusuke Hamaguchi, que fez história no ano passado com o vencedor do Óscar "Drive My Car".

O realizador impressionou o júri e também os críticos e espectadores de Veneza com a história de uma grande corporação que ameaça uma aldeia rural intocada com um projeto turístico de luxo que representa por igual oportunidades e ameaças para os seus habitantes.

O filme centra-se em particular na relação entre um misterioso homem da zona e dois relações públicas escolhidos pelo investidor para convencer os habitantes, recriando as paisagens e a forma como aquela natureza selvagem modifica, ou reforça, o comportamento de cada um.

Ryusuke Hamaguchi

O Prémio Especial do Júri, uma espécie de terceiro lugar no palmarés, foi para “Green Border”, da veterana Agnieszka Holland, um drama poderoso sobre migrantes que se concentra nos refugiados presos entre as fronteiras da Bielorrússia e da Polónia em 2021.

O trabalho conjunto com atores sírios e afegãos refugiados na Europa recebeu a reação furiosa do ministro da Justiça do país da cineasta polaca, Zbigniew Ziobro, que o comparou à propaganda nazi.

Este filme e o de Ryusuke Hamaguchi têm distribuição nacional confirmada pela Leopardo Filmes.

Agnieszka Holland

Outro filme considerado forte sobre migrantes valeu o Prémio de Melhor Realização ao italiano Matteo Garrone, conhecido pelo drama mafioso "Gomorra", que apresentou "Io Capitano".

O drama épico que acompanha dois ingénuos jovens de 16 anos que deixam o Senegal rumo à Europa, apenas para serem roubados, torturados e escravizados ao longo do caminho e, finalmente, a bordo de um barco perigosamente frágil para a Itália, valeu ainda ao senagalês Seydou Sarr o Prémio Marcello Mastroianni para melhor ator ou atriz emergente.

Matteo Garrone à direita com Seydou Sarr e os prémios de "Io capitano"

"El Conde", também bem recebido em Veneza e que será lançado na Netflix já na próxima semana (dia 15), ficou com o prémio do argumento, escrito pelo realizador chileno Pablo Larrain com Guillermo Calderón.

Uma sátira sobre o ditador Pinochet, o realizador ao receber o prémio pediu "Não à impunidade", dois dias antes do 50.º aniversário do golpe de estado no Chile.

A ausência mais surpreendente no palmarés é a de "Maestro", um muito elogiado 'biopic' sobre o compositor Leonard Bernstein dirigido e interpretado por Bradley Cooper, que não compareceu no Lido por solidariedade com as greves em Hollywood, o que fez com que quase todo o destaque da promoção ficasse a cargo da filha mais velha de Bernstein, Jamie.

Não houve prémios para filmes que tinham dividido críticos e o público, como "The Killer", de David Fincher; "Ferrari", de Michael Mann; "Dogman", de Luc Besson; e "Origin", de Ava DuVernay.

LISTA DE PREMIADOS (secções principais)

SECÇÃO OFICIAL

Leão de Ouro: "Pobres Criaturas", de Yorgos Lanthimos

Leão de Prata - Grande Prémio do Júri: "Evil Does Not Exist", de Ryusuke Hamaguchi

Prémio Especial do Júri: "Green Border", de Agnieszka Holland

Leão de Prata para Melhor Realização: Matteo Garrone por "Io Capitano"

Taça Volpi para Melhor Atriz: Cailee Spaeny por "Priscilla"

Taça Volpi para Melhor Ator: Peter Sarsgaard por "Memory"

Melhor Argumento: Pablo Larrain e Guillermo Calderón por "El Conde"

Prémio Especial do Júri: "No Bears", de Jafar Panahi

Prémio Marcello Mastroianni para melhor ator ou atriz emergente: Seydou Sarr por "Io Capitano"

Secção Horizontes

Melhor Filme: "Explanation For Everything", de Gábor Reisz

Melhor Realização: Mika Gustafson por "Paradise Is Burning"

Prémio Especial do Júri: "Una Sterminata Domenica", de Alain Parroni

Melhor Ator: Tergel Bold-Erdene por "City of Wind"

Melhor Atriz: Margarita Rosa De Francisco por "El Paraiso"

Melhor Argumento: Enrico Maria Artale por "El Paraiso"

Melhor Curta-Metragem: "A Short Trip", de Erenik Beqiri

Leão do Futuro – Prémio “Luigi De Laurentiis” para primeiras obras: "Love Is A Gun", de Lee Hong-Chi