"Al Berto" é um mergulho em três anos da vida do poeta alentejano, vivido por Ricardo Teixeira, que após voltar da Bélgica a meio dos anos 70, se instala num casarão em Sines; as portas da moradia estão abertas a quem quiser passar por lá.
Paralelamente, vive uma relação romântica com um morador da pequena localidade piscatória, João (José Pimentão). Claro que isso e a experiência libertária dos seus amigos não encaixam de modo algum com a mentalidade provinciana da região. A história tem cunhos autobiográficos: o João do filme é o irmão mais velho e já falecido do realizador.
Nesta entrevista ao SAPO Mag o cineasta fala da questão “queer” em Portugal, ainda cercada de tabus e marcada pelo que designa de “paz podre à portuguesa”. Célebre pela biografia de outro artista, a poetisa Florbela Espanca (“Florbela”), Vicente Alves do Ó aborda também as suas motivações para fazer o filme e a explosiva questão da (in) tolerância nos dias de hoje.
Em termos temáticos é um filme que lança questões contraditórias. De um lado, você faz referência ao fim da ditadura e à emancipação política (da classe operária, por exemplo); de outro, atenta para o facto destes avanços não se darem no campo social - nomeadamente no âmbito da tolerância.
Essa foi precisamente uma das razões que me levaram a fazer este filme. A perceção que tudo aquilo, aquele sonho dourado da liberdade e do 25 de Abril, não chegou a toda a gente da mesma maneira. E que, 40 anos depois, continuamos ainda a ter muitas coisas para resolver sobre o conceito de liberdade e os direitos de cada um na sua diferença. A intimidade é um assunto que sempre se manteve tabu na sociedade portuguesa. Mesmo com os avanços civilizacionais, com a modernidade, com a globalização, o assunto continua ser tão fechado como o foi naquela altura. O grupo que viveu esta história, encabeçado pelo poeta Al Berto, sofreu na pele essa falta de tolerância, esse julgamento público, mesmo pelas pessoas que mais haviam lutado pela liberdade. E o paradoxo reside exatamente nesse ponto: até onde nos podemos advogar de liberdades se depois não respeitamos os outros? É colocar um dedo na ferida? É. Mas tinha que ser feito, pela memórias deles e por esta paz podre à portuguesa – onde tentamos passar uma ideia de bem resolvidos mas onde, no fundo, ainda não resolvemos nada.
Saindo do âmbito do interior e chegando ao século XXI nas grandes cidades, pode-se diz que os homossexuais conquistaram um patamar razoável de tolerância. Ao mesmo tempo, vários países do Ocidente dão claros sinais de retrocesso - lugares como Estados Unidos, Rússia, França, Alemanha. No Brasil, há um mês houve uma polémica enorme quando um juiz autorizou a "cura gay" como prática legítima.
Acho que essa ideia de tolerância vive de uma política social onde nos educam para ter boas práticas mas que, no fundo, não resultam a todos os níveis, nomeadamente quanto toca à questão da sexualidade e pior ainda na questão emocional. Por isso, a diferença será sempre utilizada em momentos de clivagem - seja o sexo, a cor da pele, a origem social. Andamos há demasiado tempo a fazer de conta. No mundo inteiro a coisa voltou a um sítio perigoso e penso que, em Portugal, corremos também esse risco. Basta ouvir as notícias, os comentários. Só este ano já tivemos de tudo: violência policial sobre “pretos”, ataques de políticos a ciganos, médicos que falam na homossexualidade como anomalias. Este filme, portanto, vem ainda mais a tempo - não só pelos temas que aborda, mas para que provoque uma discussão ainda mais pertinente em torno de algo sobre o qual raramente se fala: o amor. Sim, amor entre pessoas do mesmo sexo.
Também cita no filme poetas como Rimbaud que, a despeito de serem artistas incómodos na sua época, hoje são ensinados nas escolas. Acho que algo assim poderia acontecer com Al Berto no Portugal do século XXI?
Gostava muito que isso acontecesse e penso que numa sociedade mais aberta e menos preconceituosa isso possa vir a acontecer.
No caso do argumento optou por não contar uma história linear, mas andar um bocado ao "sabor dos acontecimentos". Parece que preferiu focar antes um "estado de espírito" de um grupo de pessoas e retratar uma época...
Porque foi exatamente assim que esta geração viveu, achando sempre que tinha tempo para tudo, que podia fazer e ser tudo e que, no fim, resultou em muitos “nadas”. Tirando o Al Berto e mais um ou dois, os outros ficaram por ali, naquela nuvem idílica de que a juventude dura para sempre e que para viver basta existir, mais nada. Isso contaminou muita gente e penso que infelizmente é algo que sobrevive ainda hoje - essa ideia da juventude eterna - que nada nos mata ou envelhece. Aliás, hoje vivemos um período ainda pior – num mundo que só existe para os jovens. Aqueles tempos tinham essa perdição e no filme quis passar isso, mais do que me concentrar numa única narrativa. Como dizem os franceses, queria beber o "ar dos tempos" e com isso iluminar estas pessoas e estas vivências.
Os seus filmes recaem sobre personagens fortes e você demonstra um especial talento para encontrar atores aptos para os interpretar. Como foi a escolha de Ricardo Teixeira e o trabalho com ele?
Foi muito intuitivo, muito emocional, eu tinha a vantagem de ter vivido com aquelas pessoas de muito perto e com isso... dirigi-los era-me mais fácil do que foi encontrar a Florbela, por exemplo. E o Ricardo, com a sua juventude, a sua natureza, a sua força, abraçou aquele olhar e aquela expressão porque também ele, agora, faz parte da nova geração que chega e sonha em fazer coisas.
Há óbvios elementos autobiográficos na sua decisão de fazer o filme - entre os quais o facto de conhecer o próprio Al Berto e também a relação que ele teve com o seu irmão. Como foi esse processo?
Acho que esse processo foi o mais difícil porque tinha não só a memória e o material que o meu irmão deixou, como tinha a minha própria vida ali dentro. No entanto, se queria falar na vida de outras pessoas não podia "esconder" a minha - temos que estar ao mesmo nível nessa abertura e assim foi. Se falo no Al Berto tenho que falar de todo o resto – até na minha mãe e em mim. Porque, no fundo, o que temos para dar é exatamente isso, a nossa história. E é por isso que andamos cá - para contar histórias uns aos outros.
Trailer "Al Berto".
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