Ao levantar do pano, conhecemos Ihjãc, um indígena krahô de 15 anos que tenta comunicar com o espírito do seu pai frente à cachoeira. Nesta particular cena, onde a dupla de realizadores tenta construir através de passos simples uma atmosfera mística (o sobrenatural aqui fundido na realidade deste jovem “índio”), é possível encontrar um uso subtil do “olhar de ninguém” enviusado no realismo encenado.

Com isto salientamos que é através das táticas de um cinema de “guerrilha”, um alicerce do docudrama (variante cinematográfico que nós portugueses tão bem conseguimos “falar”), que “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” vai construindo um universo de cumplicidade com o indígena, acima da sua compreensão. É que com a cena inicial, apercebemo-nos o quão próximos estes homens e mulheres estão do seu lado espiritual, encarando-os com uma naturalidade que nós, ocidentais agarrados à nossa “civilização”, somos incapazes de perceber. Mas esse mistério revirará, colocando o nosso krahô num mundo que ele próprio não entende, mas que mesmo assim procura refúgio.

O indígena embarca num viagem existencialista na “civilização” dos brancos. Vilarejo que surge ao lado da sua aldeia tribal, emanando um contraste entre a espiritualidade quase xamânica com a religiosidade pregadora. Aqui, Ihjãc depara-se com uma verdadeira terra de inoportunidades, “pecados” que minam cada esquina, onde o som salienta os elementos de uma sociedade altamente patriarcal (que vai desde a música sertaneja até ao pastor que prega invisivelmente), entranhadas numa discriminação estrutural com réstias de tendências colonialistas. Por exemplo, quando o indígena recorre a ajuda médica, o equivalente do comício dos espíritos da cachoeira em “terra de branco”, mas automaticamente é abordado de forma desprezada pela enfermeira de serviço no preenchimento do formulário: “Krahô? Não. O teu nome de Branco?”.

É estranho, mas “crises existenciais” soa a “doença de primeiro mundo”, a dos privilegiados que se contentam com o consumismo fervoroso como o seu novo Deus, e não a do mero pedestre da ancestralidade imaculada (sem com isto reduzir o “índio” a uma imagem de primitivo tendo em conta os parâmetros do civilizado). Porém, é na catarse invulgar que nos deparamos com um subtil filme que fala dos nossos dias, aliás para sermos exatos, do nosso preconceito encarnado pelo qual dificilmente conseguimos admitir.

João Salaviza e a equipa do filme

Além de tudo, e de forma mais evidente, "Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos" é o retrato do Brasil de hoje, culminando nos “calores políticos” que todos conhecemos ou simplesmente não queremos entender, assim como o nosso krahô que olha para a terra de brancos com desconhecimento.

Todavia, algo que deveremos ter em conta enquanto espectadores é que o Cinema vai para além das imagens projetadas no ecrã.

O Cinema também sai da sala, ou do visor. O Cinema fala-se, debata-se e pensa-se. "Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos" é um exemplo disso: o filme é somente uma pequena porção daquilo que João Salaviza e Renée Nader Messora tentam cumprir, um ativismo que persiste até ao último krahô (sem condescendências).

O trabalho deles continuará, assim como prometeram e comprometeram.

"Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos": nos cinemas a 14 de março.

Crítica: Hugo Gomes

Trailer:

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