O filme começa com o nevoeiro que arrasta a dúvida se é silêncio que queremos ter. Raios de sol lutam por trespassar a neblina, como rasgos de fé que ainda permanecem intactos. Ao fundo, uma fila de homens caminha para a execução numa linha sinuosa e esforçada, interrompida pelo olhar sofrido de Padre Ferreira (Liam Neeson).

As ondas rebentam, a água ferve, o vento rasga a pele e a voz de Padre Ferreira sucumbe, prostrando-se de joelhos no chão, impotente... enquanto vê a tortura dos seus devotos kakure kirishitan (cristãos escondidos), crucificados pelos inquisidores japoneses.

Através da bruma que a cinematografia de Rodrigo Prieto pinta sobre a dor, Scorsese excede-se, e com a sua crença no estilo de um dos seus ídolos mais estimados: Akira Kurosawa, esta sequência é um dos mais belos momentos da filmografia do realizador... e que sumariza os próximos 160 minutos: um drama violento, ritualista, sobre a extinção do Catolicismo no Japão feudal e o aliciamento à renúncia, apostasia pelos últimos padres portugueses.

A história segue com Padre Rodrigues (Andrew Garfield) e Padre Francisco (Adam Driver), dupla que viaja para o Japão em busca de Padre Ferreira, acusado de ter apostasiado e tornado budista. Com eles segue Kichijiro, o seu guia de índole duvidosa, que vai funcionando como "comic-relief" (e que faz lembrar Toshiro Mifune dos Sete Samurais). Escondidos, são acolhidos numa aldeia de kirishitan, onde proclamam a palavra, ouvindo confissões numa língua que não entendem, assaltados pela dúvida quando os inquisidores japoneses chegam à aldeia... para que serve não pisar um símbolo de Jesus, no ritual de revelação dos inquisidores, confirmando Deus, pois se assim o fizerem, serão mortos.

Rodrigues diz para pisarem, Francisco diz que não e que rezem por coragem.

E aqui, nova sequência brilhante, furiosa e enervante sai das mãos de Scorsese... que procura exaltar a resistência da alma: a tortura das ondas, a impotência dos padres, o desespero mudo dos aldeões que vêm aqueles que renunciaram pisar o símbolo, crucificados no meio do mar, envoltos em rochas... vaga em vaga, sucumbindo à dor.

Os dois padres separam-se e seguimos com Padre Rodrigues, na sua busca por Ferreira, onde encontramos os reais valores e opiniões dos japoneses sobre os portugueses e a sua missão: eles crêem que o cristianismo é incompatível com o ser-se japonês e que os kirishitan não morreram por Jesus, mas por Ferreira, por Rodrigues e por todos os outros antes destes. E aí, Rodrigues, que vive ignorante das torturas vividas na sua terra (apesar de Scorsese não glorificar os missionários europeus, também não revela toda a história de horror e chacina começada no final do século XVI), vê o sofrimento dos seus e da sua igreja e clama por Deus, obtendo somente silêncio.

Porque "Silêncio" é uma história dual, e Scorsese quer que o público se questione, que ponha em causa a sua fé, procure a sua espiritualidade e ganhe força na sua própria consciência.

Autor: Daniel Antero.

Trailer.

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