A HISTÓRIA: Décadas após a guerra, quatro veteranos afro-americanos voltam ao Vietname para procurar os restos mortais do seu líder… e um tesouro escondido.

"Da 5 Bloods: Irmãos de Armas" está disponível na Netflix Portugal a partir de 12 de junho.


Crítica: Daniel Antero

Começando como terminou "BlacKkKlansman: O Infiltrado", o novo filme de Spike Lee ergue imagens de arquivo violentas e esmurra de imediato a sua posição com a voz do pugilista Muhammad Ali: uma acusação cáustica ao império americano e à sua guerra no Vietname, evocando os movimentos dos Direitos Civis e Black Lives Matter, sacrificados e mártires como Crispus Attucks ou Milton L. Olive, até o discurso de prenúncio fatal de Martin Luther King.

Com "Da 5 Bloods: Irmãos de Armas", Lee volta a ser autêntico e sardonicamente compulsivo, num completo ato de culpabilização das figuras que usaram os jovens afro-americanos como carne para canhão naquele país do Sudeste Asiático e daqueles que fizeram por esquecê-las a seguir.

Entre eles, a própria indústria cinematográfica de Hollywood, visada com requintes de malvadez e golpe de carrasco neste filme que pega nos cânones do género de guerra e compadrio, virando-os do avesso, apontando a nomes como Stallone, Chuck Norris ou a sombra de John Wayne, que queriam ganhar a guerra sozinhos.

Mas também há homenagens a "Apocalypse Now" (1979) e "O Tesouro da Sierra Madre" (1948), num claro regozijo pelas suas influências e meta-referências, onde, usando e abusando do seu estatuto, Lee consegue levar-nos até territórios inesperados.

Composto com "soul" e espírito de comunhão, "Da 5 Bloods" envolve um reencontro cheio de "coolness" e piadas cínicas de veteranos de guerra, prontos para enfrentar os traumas e fechar um capítulo das suas vidas. Mas debaixo do "groove" e da voz doce de Marvin Gaye, há um punho erguido, um ajoelhar vincado e a raiva de uma geração perdida.

Spike Lee, Clarke Peters (Otis), Delroy Lindo (Paul), Jonathan Majors (David) e Norm Lewis (Eddie)

Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Melvin (Isiah Whitlock Jr) e Eddie (Norm Lewis) parecem regressar ao Vietname para umas férias de luxo. Na verdade, vão em busca do corpo do seu quinto "Blood": Norman (Chadwick Boseman), o líder de batalha, de espírito e de sobrevivência, que como o seu Martin Luther King ou Malcolm X, lhes deu uma razão para se manterem vivos.

Com recurso a flashbacks, onde os quatro veteranos surgem no teatro de guerra como velhos guerreiros, e não como jovens perdidos, Lee vai provando que quem lá lutou, lá ficou, física ou mentalmente. Com cenas de ação intensas e pausas para delinear a confusão mental e patriótica daqueles soldados, "Da 5 Bloods" tanto relembra o processo complexo do recrutamento, como as ambiguidades do orgulho daqueles jovens, alienados pelas corrupções dos seus líderes racistas e da fação comunista do Vietname.

No tempo presente, a busca pelo ouro é tão somente um dispositivo externo que move as personagens num sentido de justiça e de recompensa. Como as minas que povoam aquelas terras, servirá para despoletar uma explosão que os afastará.

A manipulação de Lee é tão evidente... que deixa de o ser, cativando com o que brilha, esmurrando até a luz escurecer. Faz isso connosco, como o faz com as suas personagens. Principalmente Paul, que tem uma inflamação catártica que o retirará de stresse pós-traumático e a uma consciencialização do seu destino num monólogo que destronará o de Edward Norton em "A Última Hora" (2002) como o melhor alguma vez presente num filme de Spike Lee.

Como nós, que passaremos a ver o sangue das feridas cobertas, não tendo mais necessidade de ver as imagens de arquivo nevralgicamente colocadas que nos recordam as atrocidades.

Podemos ver ""Da 5 Bloods: Irmãos de Armas" como um filme de assalto, ação ou até comédia negra. Pouco disso interessa quando virmos a fúria de Spike Lee, o orgulho negro, o heroísmo e que tanto as vidas como as mortes negras são realmente importantes.