A HISTÓRIA: Um telefonema urgente obriga um aluno de Yale a regressar à sua cidade natal no Ohio, onde é confrontado com reflexões sobre três gerações da sua família e o seu futuro.

"Lamento de uma América em Ruínas": disponível na Netflix desde 24 de novembro.


Crítica: Daniel Antero

“Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis” é o livro de memórias de J.D. Vance, que atraiu enorme atenção mediática logo após a eleição de Donald Trump em 2016 para a presidência dos EUA.

Com foco na cultura apalachiana e na condição da classe trabalhadora branca, Vance realçou as patologias culturais da região, argumentando que estas se potenciam no meio da pobreza, dificultando a sobrevivência da classe na sociedade.

Com características distintas que vão desde a desconfiança sobre os forasteiros à resistência à autoridade, passando por um núcleo familiar impenetrável, os habitantes desta área rural foram vistos como uma fatia generosa responsável pela eleição de Trump.

Ora, num registo auto-elogioso, J.D. Vance redigiu as suas memórias, intrincando os vários problemas sistémicos desta sociedade e congratulando-se pelo facto de ter conseguido abandonar este ninho. Primeiro, alistando-se para  Guerra do Iraque e depois estudando na Universidade de Yale, vencendo etapas da sua vida, mesmo que a sua família e os valores o tenham continuado a puxar de volta aos Apalaches.

Com o dedo da argumentista Vanessa Taylor ("A Forma da Água", "Terapia a Dois") e a realização de Ron Howard, “Lamento de uma América em Ruínas” é a adaptação que, ziguezagueando pelo tempo e pelo espaço, narra a crónica de dependência e instabilidade entre J.D. (Gabriel Basso), a mãe toxicodependente Bev (Amy Adams) e a avó Mamaw (Glenn Close).

Passando pela pré-adolescência de J.D. no Kentucky até ao seu regresso a Middletown, Ohio, a narrativa grita por atenção. Estruturada dramaticamente através de atalhos emotivos e saltos galopantes de intensidade, é exploradora e coloca-nos num rebuliço de comportamentos auto-destrutivos, que realçam pobreza e disfunção familiar.

Por um lado, o filme é cabal na forma como se conecta a aqueles que lidam com dependência, abuso doméstico e privação financeira, mas por outro, é um olhar privilegiado, turista, sobre uma cultura, um núcleo que se explora, tipificando, como se se deixasse ao mau génio, à ansiedade e à índole furiosa, a justificação para tais comportamentos.

E isso é uma corrente, um trauma geracional que entendemos existir na pele de J.D., que tanto se quer afastar do legado familiar. Mas Ron Howard e Vanessa Taylor não o representam eficientemente no filme, sacrificando a intimidade no seio da família para nos dar representações exuberantes de Amy Adams e Glenn Close.

Justiça seja feita, como comprovam os créditos finais, as atrizes, respetivamente com sete e seis nomeações para os Óscares sem nunca terem ganho a estatueta, são estarrecidamente semelhantes às figuras reais – cheias de gestos violentos e atitudes “a pulso”, fruto da dependência do álcool e drogas, aqui retratadas como escolhas individuais e não resultado de um problema maior, sistémico, de comunidade.

Drama exagerado e gritante, “Lamento de uma América em Ruínas” é uma novela carpideira prepotentemente didática no que se refere ao espírito “hillbilly”. Nunca se preocupa em nos mostrar a raiz da alma daquele povo e foca-se na ideia antiquada do “American Dream”. Ron Howard sabe, como sempre, que os Óscares adoram isso.