A HISTÓRIA: Passado numa época peculiar em Veneza, após a Segunda Guerra Mundial, na véspera do dia de Todos os Santos, "Mistério em Veneza" é um mistério aterrador que marca o regresso do célebre detetive, Hercule Poirot. Agora reformado e a viver num exílio auto-imposto na cidade mais glamorosa do mundo, Poirot assiste relutantemente a uma sessão espírita num palácio decadente e assombrado. Quando um dos convidados é assassinado, o detetive é empurrado para um mundo sinistro de fantasmas e segredos.

"Mistério em Veneza": nos cinemas a partir de 14 de setembro.


Crítica: Francisco Quintas

O mistério é um género narrativo que tem encontrado maior conforto, sem dúvida, na televisão. Na Netflix, Mike Flanagan revelou-se um autor afiado, produzindo e estreando, quase anualmente, minisséries que deixariam Edgar Allan Poe e Stephen King orgulhosos (“A Queda da Casa de Usher”, vale informar, chega dia 12 de Outubro).

Por sua vez, seguindo o sucesso global de “Knives Out” (2019) e “Glass Onion” (2022), seria de esperar que Rian Johnson aceitasse algum dos convites para escrever, desta vez, uma série 'whodunnit' (“quem matou quem?”), mas foi a SkyShowtime que viu o respetivo catálogo acrescido com “Poker Face”, um 'thriller' com idênticas veias humorísticas e um elenco de requinte.

Já no cinema, um dos autores que mais têm feito pelo género, num molde tradicional, é Kenneth Branagh, ator e realizador norte-irlandês, com uma formação 'shakespeareana' que o levou de “Hamlet” (1996) a “Thor” (2011) e, mais recentemente, a “Belfast” (2021).

Esta carreira altamente eclética, a braços com os apetrechos modernos do audiovisual, levou-o a conceber uma trilogia baseada na obra de Agatha Christie. Não o impediu, no entanto, de consideráveis imperfeições.

Se “Um Crime no Expresso do Oriente” (2017) benzeu-se com um elenco de atores de excelência – o próprio Branagh e o seu bigode deslumbrante fizeram um fantástico Hercule Poirot –, mas não cumpriu o rigor da literatura a que pediu o homicídio emprestado, “Morte no Nilo” (2022), fora uma campanha publicitária que lhe rogou um fatídico prejuízo financeiro, não escapou de desfechos previsíveis e algumas interpretações afetadas.

Serve isto para dizer que “Mistério em Veneza” (2023) é o melhor título de Branagh nesta aventura pelas páginas de intriga e sangue da escritora britânica.

Visualmente falando, tomou escolhas mais conscientes. Recorreu, por exemplo, a grandes-angulares para exacerbar a ambiência desconcertante, preenchida por personagens à beira da loucura. Semelhante ao que fez o grego Yorgos Lanthimos em “A Favorita” (2018), diga-se.

Em simultâneo, aprimorou a composição dos enquadramentos, a iluminação, noturna e interior quase num todo, e a direção de atores. Apesar de algumas peças dificilmente passarem do arquétipo – o tempo é escasso –, não existem interpretações defeituosas.

Além do tão elogiado Branagh, aqueles que conseguem extrair um sumo espesso são Michelle Yeoh, Tina Fey, Jude Hill e Riccardo Scamarcio. Os mais desaproveitados são Jamie Dornan, Ali Khan e Emma Laird.

Principalmente em “Um Crime no Expresso do Oriente”, o maior inimigo de Branagh foi o desequilíbrio entre belíssimas técnicas cinematográficas e a pressa em narrar a ação. A perspetiva audaz e pomposa de Hercule Poirot e a energia distinta de cada ator revitalizam enredos com risco de murchar algures no segundo ato. A par de resoluções nem sempre convincentes.

Em “Mistério em Veneza”, esse problema está sanado, mas não a cem por cento. A menor duração presta um favor, mas dir-se-ia que Branagh precisa de confiar mais na capacidade do público em acompanhar e, acima de tudo, desvendar o mistério pela sua cabeça. Mesmo que o fim consiga arrancar-nos o tapete abruptamente dos pés, experiências como esta são mais satisfatórias quando o exuberante detetive nos passa o testemunho. Quando o espectador pode cofiar o bigode em introspeção e deliberar sobre o assassino entre nós.