A HISTÓRIA: Toby, um cínico diretor de publicidade, encontra-se preso aos delírios de um velho sapateiro espanhol que acredita ser Don Quixote e vê nele o Sancho Pança. No decurso das suas aventuras cómicas e progressivamente surreais, Toby é forçado a confrontar as trágicas repercussões de um filme que fez enquanto jovem idealista -um filme que mudou para sempre as esperanças e sonhos de uma pequena vila espanhola. Conseguirá Toby recuperar sua humanidade? Poderá Don Quixote sobreviver à sua loucura e morte iminente? Ou será que o amor triunfará?

"O Homem que Matou Don Quixote": nos cinemas a partir de 17 de fevereiro.


Crítica: Daniel Antero

Finalmente!” Foi provavelmente o que Terry Gilliam gritou - embora substituindo a expressão com um vernáculo mais colorido - quando concluiu “O Homem que Matou Don Quixote” na sala de montagem.

Tudo começou em 1989, quando o realizador de “Brazil” e “12 Macacos”, leu a obra afamada de Miguel de Cervantes e decidiu dar-lhe um 'twist' à moda de Mark Twain e o livro “Um Americano na Corte do Rei Artur”.

Adaptando livremente “Dom Quixote de La Mancha” [o "Dom" passa a "Don" no filme] com anacronismos fluídos e sonhos perigosos, Gilliam quis criar uma odisseia excêntrica, onde esbatia realidade e fantasia entre Don Quixote e a sua personagem principal. Mal ele sabia que iria passar no cinema por um calvário igual ao daqueles dois, acabando a filtrar uma unidade muito própria de si: a do autor/cavaleiro que se reencontra após enfrentar a sua ilusão.

De produção amaldiçoada, “O Homem que Matou Don Quixote” deambulou durante trinta anos. Foram vários os inícios, fracassos, desilusões e infortúnios, onde figuras como Jean Rochefort, Johnny Depp, Vanessa Paradis, Robert Duvall, Michael Palin e John Hurt procuraram ajudar Gilliam a levar esta obra a um abrigo seguro.

Nem depois de filmado e pronto a estrear, após tamanha intempérie e já com o apoio da produtora portuguesa Ukbar Filmes, se viu livre de novas tormentas: uma disputa legal pelos direitos com o produtor Paulo Branco; acusações de danos ao património do Convento de Cristo em Tomar; e até declarações da atriz portuguesa Lídia Franco contra a intensidade do agora ator principal Adam Driver.

É difícil não ver esta obra com a sua sombra trágica, peso e mágoa que o realizador transportou consigo durante anos: “O Homem que Matou Don Quixote” é Terry mastigado por Gilliam, escrito e reescrito por ilusões quixotescas que viram a inocência e a paixão de trinta anos serem consumidas pela indústria.

Por isso, o grande triunfo é que este filme existe e como poderão verificar os fãs do realizador americano (outrora membro dos Monthy Pyhton), vive inteiramente através de Gilliam até nós.

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São vários os ecos dos seus filmes e personagens anteriores: o 'casting' do extraordinário Jonathan Pryce como Don Quixote, ele que interpretara Sam Lowry, o cidadão apanhado na teia burocrática em “Brazil”; passando pelo cavaleiro negro de “O Rei Pescador”; os saltos temporais de "Os Ladrões do Tempo" ou "12 Macacos"; até a Inquisição Espanhola por aqui aparece!

O que também não falta é o estilo autoral: o realismo mágico e a bizarria; as máscaras disformes e a elasticidade dos rostos; a quebra da quarta parede, neste caso a eliminação de legendas de forma criativa; entre outros. Até a própria personagem de Adam Driver, um realizador delirante e entediado, diminuído a Sancho Pança aos olhos de Don Quixote pode ser visto como um reflexo de Gilliam. Pois o constante vaivém entre a ilusão e a realidade atesta as ambições do realizador, que foram crescendo nos anos de espera e de reescrita do guião.

Em "O Homem que Matou Don Quixote" tudo é ambíguo e meta-textual: a História e a Literatura, a magia do cinema e a exigência nos bastidores, os jogos de poder e a criatividade que se dissipa. Mas, gradualmente, Gilliam lima as suas lanças e refina as suas críticas, como vemos nas abordagens à misoginia, ao islamismo e às referências a poderosos produtores que subjugam sonhadoras atrizes. Neste caso, a idílica Dulcineia/Angelica, a amada de Toby na vida real e a musa de Don Quixote na fantasia, interpretada pela atriz portuguesa Joana Ribeiro.

Comédia dramática, aventura fantástica, este filme é o culminar da epopeia de um idealista, de um combatente que não quis deixar morrer o cavalheirismo, a hombridade e o sonho. A história de um homem que leu romances e criou o seu, enfrentando os moinhos de vento feitos gigantes. E que, ao contrário do final da obra de Miguel de Cervantes, venceu o Cavaleiro da Lua Branca e conquistou a sua Dulcineia.

Don Quixote? Não. Terry Gilliam.

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