A HISTÓRIA: Um retrato ficcionado de uma noite incrível em que os icónicos Muhammad Ali, Malcolm X, Sam Cooke e Jim Brown se juntaram para discutir os seus papéis no movimento pelos direitos civis e na revolução cultural da década de 1960.

"Uma Noite em Miami...": disponível na Amazon Prime desde de 15 de janeiro.


Crítica: Daniel Antero

25 de Fevereiro de 1964. Figuras incontornáveis, vozes fascinantes da comunidade negra a nível artístico, religioso e desportivo, Malcolm X, Cassius Clay (mais tarde Muhammad Ali), Jim Brown e Sam Cooke reuniram-se no quarto de um motel em Miami.

"Uma Noite em Miami..." é a adaptação da peça homónima de Kemp Powers (co-realizador de "Soul", da Pixar) que ficciona um encontro de que apenas existem fragmentos superficiais sobre o que realmente aconteceu. Atrás das câmaras como realizadora, a actriz Regina King (a "Sister Night" da série "Watchmen" e vencedora do Óscar como secundária por "Se Esta Rua Falasse") cria um drama intenso com interpretações memoráveis que nos marca sempre que nos lembramos do peso das suas figuras históricas.

Eli Goree interpreta com leveza e charme o atlético pugilista Cassius Clay (1942-2016), a dançar e gabar-se dos seus feitos. Os fãs de Leslie Odom Jr no musical "Hamilton" vão rejubilar com a sua presença em palco, revelando a raiva e frustração do cantor Sam Cooke (1931-1964) e o calor da sua voz que arrebata os demais. Kingsley Ben-Adir, que se demarca do líder do movimento pelos direitos civis Malcolm X (1925-1965) de Denzel Washington no filme de 1992, hesita e converge nas suas crenças e posição, numa destreza e urgência marcante, sabendo nós que daquela noite a um ano, X seria assassinado. E Aldis Hodge é o jogador de futebol americano Jim Brown (1936), firme e carismático, o sonhador e mediador de sonhos dos outros.

Cada um deles está à beira de um grande passo na sua carreira: Clay acaba de se tornar campeão mundial de boxe de pesos pesados; Jim Brown irá abandonar a carreira na NFL para enveredar pelo cinema; Sam Cooke, o homem do soul, criou uma editora para apoiar jovens artistas; e Malcolm X prepara-se para abandonar a Nação do Islão.

Crédito, resiliência e talento enchem o quarto daquele motel, mas o que eles querem agora é relaxar e celebrar a vitória de Clay. Mas entre bebidas espirituosas escondidas e colheradas em gelados de baunilha, são surpreendidos por Malcolm X, que tem outros planos: convencer os amigos a usar a sua fama para algo maior, algo que eleve a voz e o poder negro.

Malcolm X exige-lhes que assumam a voz da revolução quando Brown e Cooke defendem que o sucesso reside em explorar o sistema em seu próprio benefício. E Clay é um jovem que acabou de descobrir a religião, a quem é pedido que escolha entre a doutrina de X e a Nação do Islão, liderada por Elijah Muhammad.

O que se segue é um debate sobre a luta dos direitos civis, colorismo, as exigências a alguém que está num pedestal mas que trabalhou arduamente para lá chegar, os perigos de se ser uma celebridade e a coragem para se manifestar e ser algo mais do que um fantoche da indústria do entretenimento. A noite irá terminar com a convergência das suas dores ocultas e ambições mais pessoais.

Com um registo teatral, encenado de forma simples e coesa, atento e guiado pelo diálogo, este é um filme onde Regina King, confiante e com pulso, evoca memórias e cicatrizes, eventos e lugares que definiram homens e os ergueram como parte da História.

A narrativa de "Uma Noite em Miami..." usa a liberdade sobre algo que aconteceu à porta fechada, mas graças à essência de cenas em flashback e a excelência dos atores, o sentimento e o sonho prevalecem para lá das dimensões daquele quarto.