A HISTÓRIA: Reed Richards/Mister Fantástico, Sue Storm/Mulher Invisível, Johnny Storm/Tocha Humana e Ben Grimm/Coisa enfrentam o seu maior desafio até agora. Forçados a equilibrar os seus papéis enquanto super-heróis com a força dos laços familiares que os une, terão de defender a Terra de um deus espacial voraz chamado Galactus e do seu enigmático Arauto, o Surfista Prateado.

"O Quarteto Fantástico: Primeiros Passos": nos cinemas desde 24 de julho.


Crítica: Manuel São Bento
(Aprovado no Rotten Tomatoes. Membro de associações como OFCS, IFSC, OFTA. Veja mais no portfolio).

O Universo Cinematográfico Marvel (MCU) continua em plena metamorfose. Após anos de expansão e interligações ambiciosas, a saga enfrenta uma nova fase de redefinição. Com Kang (Jonathan Majors) afastado do trono do antagonismo devido a razões extracinematográficas e criativas, o manto de "big bad" da Fase Seis passou oficialmente para Doutor Doom, que será chocantemente interpretado por Robert Downey Jr..

O "reset" narrativo confirmado por Kevin Feige nos próximos "Vingadores" surge com "O Quarteto Fantástico: Primeiros Passos" como rampa de lançamento, funcionando como a entrada oficial destas personagens na cronologia principal do MCU. É, ao mesmo tempo, uma espécie de recomeço histórico: após adaptações cinematográficas no mínimo problemáticas ao longo das décadas - e por mais que a nostalgia dos anos 2000 grite alto - nunca se fez justiça plena ao Quarteto Fantástico. Até agora...

Realizado por Matt Shakman (realizador de "WandaVision", a minha série preferida da saga) e escrito a oito mãos por Josh Friedman ("O Reino do Planeta dos Macacos"), Eric Pearson ("Thunderbolts*"), Jeff Kaplan & Ian Springer, "Primeiros Passos" representa um novo e promissor capítulo na Marvel. Com um elenco de luxo, liderado por Pedro Pascal ("The Last of Us") como Reed Richards, Vanessa Kirby ("Pieces of a Woman") como Sue Storm, Joseph Quinn ("Stranger Things") como Johnny Storm e Ebon Moss-Bachrach ("The Bear") como Ben Grimm, aposta fortemente na química do seu quarteto principal para dar corpo a uma narrativa sobre família, sacrifício e o eterno conflito moral entre o Bem e o Mal.

Como alguém que nunca sofreu com a famosa "fatiga de super-heróis” - uma ideia que considero errónea e normalmente usada como desculpa para justificar produções medianas - entrei para o cinema com bastante entusiasmo. A fasquia estava alta não só pela equipa criativa envolvida, mas também por uma banda sonora de Michael Giacchino ("Up - Altamente!") que fez questão de constamente passar pelo meu filtro habitual pré-lançamentos e incessantemente aumentar as minhas expectativas. E nesse sentido, "Primeiros Passos" não desilude.

Tecnicamente, o filme impressiona sobretudo em dois aspetos: a banda sonora e a cenografia. Giacchino entrega uma banda sonora arrebatadora, que arrepia desde os primeiros minutos, culminando num tema principal tão marcante quanto merecedor de figurar entre os melhores da Marvel. É emocional sem ser manipulador, épico sem ser exagerado. Sem sombra de dúvida, um dos melhores acompanhamentos musicais que experienciei no cinema este ano. Já a cenografia - e restante produção artística, na verdade - acerta no tom retrofuturista pretendido, com um design visual que evoca as raízes dos F4 nas bandas desenhadas originais de Jack Kirby e Stan Lee. A predominância de tons azuis - símbolo claro da identidade do grupo - salta do ecrã de forma vívida, contribuindo para uma atmosfera simultaneamente nostálgica e inovadora.

O grande tema que permeia o argumento é, naturalmente, a família. E ainda que os quatro argumentistas joguem pelo seguro, não arriscando em grandes surpresas narrativas, "Primeiros Passos" consegue explorar este conceito de forma cativante. Através de dilemas morais relacionados com maternidade, sacrifício e humanidade, mergulha numa análise leve mas eficaz sobre o que significa realmente ser herói. Os conflitos não se resumem a socos e lasers; há um estudo da dicotomia entre vida e morte, entre dever e desejo pessoal, entre responsabilidade e egoísmo - tudo isto alicerçado na dinâmica íntima do grupo titular.

"Primeiros Passos" explora também - ainda que de forma mais subtil - a identidade individual dentro de um coletivo. Cada membro do Quarteto enfrenta uma crise interna que transcende os seus poderes - Sue confronta o dilema entre ser mãe e heroína de todo um povo, Reed lida com a pressão de ser o cérebro racional num mundo emocional, Ben debate-se com a perda da sua humanidade visível e Johnny tenta provar que é mais do que um rosto bonito e impulsivo. O argumento, apesar de contido, traça estas lutas com sensibilidade suficiente para que os espetadores sintam o peso emocional das escolhas de cada personagem, mesmo quando o enredo não se aprofunda com complexidade filosófica.

Outro tema latente é a inevitabilidade da mudança e como esta afeta as relações humanas. Desde o momento em que a ameaça apocalíptica entra em cena, todos são obrigados a reformular as suas noções de propósito, moralidade e sacrifício pessoal. "Primeiros Passos" levanta questões pertinentes: o que nos define quando deixamos de ser apenas humanos? O heroísmo está no que fazemos ou no que abdicamos para proteger os outros? Estas reflexões tornam-se mais intensas nos momentos de conflito, especialmente quando Galactus (Ralph Ineson, "Nosferatu") impõe decisões com consequências irreversíveis. Embora o filme nunca tome uma abordagem abertamente existencialista, as sementes estão lá - o suficiente para estimular debates fora da sala de cinema.

Mudando de "departamento", Kirby é, sem sombra de dúvida, o destaque-maior do elenco. A atriz, que já provou o seu talento em papéis emocionalmente complexos, volta aqui a demonstrar a sua versatilidade ao interpretar uma Sue profundamente humana. Carrega nos ombros um arco narrativo exigente que obriga a um malabarismo emocional contínuo: a personagem é confrontada com decisões morais extremas que a fazem questionar o seu papel como mulher, cientista, mãe e super-heroína. A sua entrega é comovente, contida, mas explosiva quando necessário.

Quinn e Moss-Bachrach trazem um equilíbrio bem-vindo entre humor e emoção. Johnny é apresentado como um elemento mais impulsivo, subestimado até pelos próprios familiares, mas que acaba por revelar um espírito altruísta genuíno, mesmo que o seu desenvolvimento dramático fique algo sacrificado pelo ritmo da obra. Já Ben, limitado fisicamente pela sua condição de "O Coisa", representa o peso emocional da equipa - a sua frustração, isolamento e desejo de intimidade são abordados de forma sensível, ainda que também pudessem ser aprofundados com mais tempo de ecrã.

Já Pascal, com o seu habitual "gravitas", incorpora um Reed dividido entre lógica e emoção. O ator capta com eficácia a tensão interna de alguém habituado a pensar em soluções práticas para dilemas sem resolução simples. O conflito de Reed é essencialmente o de um pai em potência, incapaz de aceitar que nem tudo pode ser resolvido com cálculos. Embora a sua prestação seja sólida, é talvez a personagem que menos se destaca do grupo.

No campo dos efeitos visuais, a qualidade é inconsistente. Galactus, surpreendentemente, emerge como um dos elementos mais aterradores e tecnicamente impressionantes de "Primeiros Passos", uma presença intergalática que, embora relegada a momentos pontuais, deixa um impacto duradouro. Já os poderes dos heróis variam em execução: a parte "elástica" de Reed, em particular, continua a ser um desafio visual, com alguns planos a roçarem o desconforto estético.

Julia Garner ("Ozark"), por sua vez, empresta uma intensidade calma ao seu Surfista Prateado, transmitindo as emoções necessárias mesmo através da sua "maquilhagem" metálica e postura etérea. Infelizmente, tal como grande parte do filme, a personagem é tratada com alguma reserva criativa - o argumento não ousa reinventar ou arriscar na sua abordagem. É tudo demasiado previsível e formulaico, mesmo que o produto final funcione bem dentro dessa fórmula.

O maior obstáculo de "Primeiros Passos" é, curiosamente, o seu próprio estatuto de "primeiro capítulo". A narrativa tem dificuldade em justificar a sua duração (menos de duas horas), com um ritmo algo desequilibrado e um terceiro ato que, apesar de visualmente grandioso, carece de verdadeira tensão narrativa ou surpresas impactantes. A história aposta quase tudo no "build-up", com uma recompensa emocional mais eficiente do que genuinamente dramática. Ainda assim, é refrescante que o foco se mantenha no Quarteto Fantástico e não em preparar terreno para os Vingadores ou outros filmes - o que muitos espectadores, com certeza, esperarão erradamente.

Esta é, sem grandes surpresas, a melhor versão no cinema do Quarteto Fantástico até a data, mas como bem se sabe, tal testamento não significa muito. "Primeiros Passos" brilha mais pelo carisma do elenco, a excelência da banda sonora e a segurança formal da realização de Shakman, do que por originalidade ou ambição narrativa.

Existem duas cenas pós-créditos. E é tudo o que direi sobre as mesmas.

Conclusão

"O Quarteto Fantástico: Primeiros Passos" não só apresenta uma equipa com potencial para liderar a nova era do MCU, como também estabelece uma identidade própria: sensível, visualmente distinta e emocionalmente ancorada. Entre a banda sonora arrepiante de Michael Giacchino e a estética retrofuturista imersiva, sem esquecer a química inegável entre os quatro protagonistas, existe uma coesão rara neste filme de origem, apesar de problemas secundários. A carga dramática sentida nas expressões de Vanessa Kirby, os dilemas íntimos de Pedro Pascal e a vulnerabilidade de Joseph Quin e Ebon Moss-Bachrach revelam um cuidado invulgar com os detalhes humanos. Se estes são os primeiros passos, são passos seguros, mas com muita alma.