Variações
“E quem é que te disse que quero adaptar-me a Lisboa? Lisboa é que tem que se adaptar a mim”. Longe de ser uma figura do seu tempo, António Ribeiro, ou como é conhecido entre nós, António Variações, provocou um país ainda desconfortável com as próprias mudanças e fê-lo através da música, com a união entre um certo tradicionalismo (Amália era a sua principal influência) e uma vontade nova de cantar.
Assim nasceu o artista, ainda hoje relembrado como uma das principais inspirações para as gerações que se seguiram, cantautor de temas de êxito como “Estou Além”, “É P'ra Amanhã”, “O Corpo é que Paga” e obviamente “A Canção de Engate” (música que já integrou alguns dos momentos mais belo do nosso cinema), que “vê” por fim nos cinemas a sua primeira cinebiografia, 35 anos depois da sua morte.
Mas para chegar até aqui muito foi batalhado, e que o diga João Maia, realizador e argumentista, que em 2009 viu o seu guião ser alterado sem o seu conhecimento, o que gerou um confronto pelos direitos com a então produtora Utopia Filmes (responsável por “coisas” como “Second Life” e “Corrupção”). O projeto manteve-se no limbo desde então, até que, graças à persuasão de Maia, “Variações” sai do seu coma induzido com a bênção do produtor Fernando Vendrell e da sua David & Golias, e transforma-se finalmente… num filme concretizado.
“Variações” tem essa luz de irreverência no nosso panorama cinematográfico, muito mais pela espera em ver este projeto realizado e por preencher um corpo que faz jus à figura transposta. O ator Sérgio Praia, que já havia interpretado o cantor numa peça de teatro de Vicente Alves do Ó, é o motor desta obra que visa a busca do homem por detrás do artista e não o inverso.
A sua incorporação arrasta o filme para patamares acima de anteriores protótipos de cinebiografias já produzidas entre nós (a relembrar dois vergonhosos casos como “Salazar – A Vida Privada” e “Amália - O Filme”), que são de puro mimetismo primário e que em certos casos reduzem as personalidades a caricaturas de si próprias. Em “Variações”, Praia estabelece um vínculo emocional com a figura, resgata-a do “papel de cartão”, do objeto da memória coletiva, e transporta-a para o holofote como um ser inteiro nas suas dúvidas existenciais, artísticas, térreas e amorosas.
Por força do ator, o filme de João Maia encontra um propósito para a sua concepção, ainda para mais alicerçado na construção do seu ecossistema por um trabalho afincado de direção artística e guarda-roupa que exalta a extravagância da figura titular. Infelizmente, apenas isso resta dos desígnios fílmicos do cantor. O resto, mesmo não jogando inteiramente no conceito televisivo como as duas cinebiografias acima mencionadas, é de um academismo rigoroso quanto à sua estética, planificação e até mesmo narrativa, guiada por modelos “americanizados” ou simplesmente de fácil reconhecimento por via dos protótipos "mainstream".
“Variações” não se presta a romper fronteiras como o seu homenageado o fizera no final da década de 70 e inícios de 80, ficando, ao invés disso, pela sombra do modelo e do retalho biográfico como “fact check”. Vale pelo seu ator, mas o resto é como diz a canção: “quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga”. E se paga!
"Variações": nos cinemas a 22 de agosto.
Crítica: Hugo Gomes
Trailer:
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