Quando há cerca de um ano foi anunciado o “casamento” entre
Carlos do Carmo e
Bernardo Sassetti, muitos pensaram que a união musical seria ao estilo de uma Elisabeth Taylor, não durando mais que uma lua-de-mel e um par de semanas para, depois, cada um ir à sua vidinha. A verdade é que a relação tem estreitado laços e, em menos de um ano, foram já celebradas as bodas de ouro.
Pensar em fundir a voz de Carlos de Carmo, que canta o fado com a alma e o estilo da chanson française ao piano de Sassetti, um viajante da modernidade com sabor a jazz, era um exercício complicado, mas apenas até os ouvidos terem encontrado pela primeira vez “
Carlos do Carmo e
Bernardo Sassetti”, um cancioneiro musical que reinventava temas de Sérgio Godinho, Léo Ferré, José Afonso ou Jacques Brel.
Ontem, o dia em que por todo o planeta se celebrou o Dia Mundial da Música, a dupla apresentou num CCB esgotado, ao vivo e de forma oficial, o disco que juntos lançaram há já quase um ano, com o título “
Carlos do Carmo e
Bernardo Sassetti”.
Ao centro do palco despido o piano, assente sobre uma nuvem vermelha e ladeado por cortinas iluminadas de um laranja quente; em fundo um negrume que ia acolhendo as cores com que cada um dos temas era pintado. Sassetti entra sozinho e abre a noite com um instrumental de um tema popular, com uma delicadeza que se iria manter até à última nota.
Carlos do Carmo entra, beija carinhosamente Sassetti - como um pai beijaria um filho pródigo - e agradece desde logo a presença de todos com um abraço cruzado, mudo e silencioso. Começa com o exigente “Cantigas do Maio”, do “saudoso e intemporal José Afonso”, dando razão àquilo que mais tarde diria Sassetti: “Este homem tem uma métrica que não dá para acreditar”.
O cantor aproveita para agradecer a paciência que com ele tiveram ao longo de 48 anos de carreira, e fala deste concerto – e do disco lançado – como um encontro de almas gémeas, de músicas que escolheu cantar com pena de não terem sido compostas para si. Diz também que não houve tempo nem paciência para grandes ensaios. Não por se terem posto a jeito da preguiça, mas antes para que a realidade se soltasse de forma mais verdadeira.
Vestimos os casacos e descemos até ao Tejo, entrando num café de marinheiros de água doce e gente que tem de “rapar as pernas para que o dia | Não traia |Dietriches que não foram nem Marlénes." “Lisboa que amanhece”, imortalizado pela voz de Sérgio Godinho, é aqui apresentado numa versão mais senhorial.
Tempo depois para percorrer as ruas e ver a miudagem escarnecer para depois fugir a sete pés do homem do saco. Ouvimos “Ferro Velho”, composto a partir de um poema de Alexandre O´Neill, canção que
Carlos do Carmo disse não cantar há mais de 40 anos.
“Avec les temps”, de Léo Ferré, marca a entrada no território da chanson française. Um tema que, confessa
Carlos do Carmo, “deu cabo da cabeça e dos ouvidos dos meus filhos”.
Chega a vez da noite se tornar perigosa e ser necessário puxar pela “Navalha”, um fado sanguinário escrito por António Lobo Antunes e musicado por Tinoco Faria. Uma canção, diz
Carlos do Carmo, que o “fez suar muito”, escrita enquanto cantava e que era interrompida de quando em vez para que se trocasse um verso ou uma quadra inteira.
Cruzamos o oceano e aterramos nos Açores, essa majestosa Atlântida portuguesa, para passearmos entre vacas e prados verdejantes tendo o “Sol” por companhia. Um fantástico tema, incluído no Cancioneiro Popular dos Açores, que se revelou um dos momentos mais altos da noite.
“Quando estamos em fim de carreira as editoras propõem duetos”, brinca
Carlos do Carmo. Ficámos a saber que o disco será mesmo uma realidade em 2012, e que um dos nomes confirmados é o de Paco de Lucia. Outro dos nomes, por vontade de
Carlos do Carmo, seria Mercedes Sosa, com o recurso às novas tecnologias (assim como Natalie Cole fez com o seu pai, o grande Nat King Cole). Depois de contar um episódio de quando os dois se cruzaram no Rio de Janeiro, Carmo e Sassetti avançam para “Gracias a la vida” (escrito por Violeta Parra).
Após a visita às Américas e de um mergulho refrescante no tango, regressamos a Portugal e à escrita de Mário Cláudio, para quem
Bernardo Sassetti compôs uma música original. Uma brincadeira de miúdos, diz-nos Sassetti, já que “o poema está cheio de música”. Mas, porque não dizê-lo, “Retrato” é, “modéstia à parte, uma canção brilhante”. E é, de facto.
Sassetti aproveita o descanso para dizer a
Carlos do Carmo “é muito emocionante tocar consigo”. A resposta não se faz esperar, com um “Bernardo, é muito emocionante tocar consigo”. É depois desta confissão pública das almas gémeas que damos um salto à bela e sombria cidade do Porto, para pintarmos uma aguarela ao som de “Porto Sentido”, tema inventado por Carlos Tê e cantado por Rui Veloso.
Segue-se outro tema que tinha ficado por cantar há mais de 20 anos. “Foi por ela”, canção composta por Fausto, “fala de todos. Do Ministro das Finanças, do Ministro da Economia...”, brinca
Carlos do Carmo. Já Sassetti fala numa “arquitetura impressionante”.
Carlos do Carmo fala então do seu mestre. Ou melhor, de um deles, já que ao longo da carreira confessa ter tido quatro. Alguém que dizia que “no mundo do espetáculo vale tudo menos fazer batota”. Eis Jacques Brel, que quando deixou de cantar e lhe perguntaram a razão simplesmente respondeu que “já não tinha nada a dizer às pessoas”. E valsámos ao som de “Valse à mille temps”, cada vez mais depressa, até um final apoteótico que terminou com uma ovação de pé antes de
Carlos do Carmo e
Bernardo Sassetti darem por terminado o 1º ato
No regresso ao palco cada um dos artistas recebeu o seu disco de ouro das mãos de representantes da editora Universal.
Carlos do Carmo disse que dos dez temas incluídos no disco cinco tinham sido gravados ao primeiro take, e que quando saíram do estúdio comentaram entre eles que aquilo não ia vender nada. “As pessoas agora querem é sudoeste, noroeste, e aquilo tinha pouco vento”, atira
Carlos do Carmo para riso geral.
O encore foi servido com três fados, isto porque o Fado é por esta altura candidato a Património Mundial. Algo que se saberá dentro de muito pouco tempo.
“Carta a Ângela”, fado de Carlos de Oliveira, serviu para
Carlos do Carmo contar mais uma história. Disse que um dia, depois de um concerto, uma senhora chegou ao pé de si dizendo “eu é que sou a Ângela”. Aquilo não lhe entrou logo no ouvido, já que “havia quem viesse falar comigo dizendo que tínhamos andado juntos na tropa, eu que nunca foi à tropa”. Percebeu depois que era a mulher de Carlos Oliveira, a quem era dirigida aquela bela carta de amor.
Carlos do Carmo dedicou então a música a Ângela, mencionando desconhecer se a senhora seria ainda viva. Alguém da plateia gritou que sim, e Carlos pediu então para lhe entregar um grande beijo, e para lhe dizer que naquela noite se tinha cantado a sua bela carta. Por instantes foi como se estivéssemos numa casa de fados bem portuguesa, com o vinho a ser servido de jarros de barro, as sardinhas a saltarem das brasas para os pratos de louça, os cigarros pousados nos cinzeiros e um ambiente de grande familiaridade.
Carlos do Carmo confessa que “pôr o Bernardo a tocar Fado é uma violência”. Não porque o pianista não goste, mas porque lhe apetece “jazzar” aquilo tudo. Foi o mote para “Talvez por acaso”, um fado onde o blues se encontra com o fado castiço e que conta uma história de uma grande zanga que termina com o fazer das pazes – porventura a razão mais óbvia para uma zanga.
A despedida foi feita ao som de “Fado da saudade”, um clássico com letra de Fernando Pinto do Amaral e música de Alfredo Marceneiro.
Chegava ao fim um requintado encontro de almas gémeas, onde se pôde ouvir o fado cantado com a luxúria da chanson française e envolto num piano que está um passo à frente da modernidade. Houve fado e houve jazz. Ouviu-se o melhor de dois mundos.
Texto:
Pedro Miguel Silva
Fotografias: Joanica Cardoso
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