A peça, que vem no seguimento de uma série de Dinis Machado inspirada naquela obra do coreógrafo Vaslav Nijinsky, do início do século XX, será apresentada primeira vez em Lisboa, no palco do Teatro do Bairro Alto, de quinta-feira a domingo.
Vista como um marco na história da dança, “A Sagração da Primavera” foi coreografada originalmente por Vaslav Nijinsky (1889-1950) a partir da música composta por Igor Stravinsky (1882-1971), que aborda o tema da celebração da natureza, estreando pelos Ballets Russes em Paris, em 1913.
“A minha relação com Nijinsky é um pouco paradoxal. Por um lado há qualquer coisa na obra dele que me interessa bastante, que tem a ver com os corpos construídos, com uma espécie de organicidade estranha, meio monstruosa, meio construída artificialmente”, enquadrou a coreógrafa, entrevistada pela agência Lusa.
Nesses corpos da peça clássica, a coreógrafa encontrou várias ligações com os corpos queer e trans, por serem “também construídos, mas com um funcionamento em si mesmos, uma verdade própria”, numa vivência paradoxal entre “o orgânico e o artificial”.
Na narrativa da celebração da Primavera do coreógrafo ucraniano, uma comunidade elege uma mulher muito bela – que na coreografia tem um solo central – e que acaba por dançar até à morte.
Machado pegou nesta “ideia bizarra” de que o prémio da beleza feminina é dançar até à morte, e criou alternativas a esta forma de celebrar.
“Na minha versão, a ideia de feminino é substituída por corpos queer, que têm uma carga histórica muito pesada, de projeção de morte, um olhar heteronormativo e trágico, de condenação. Eu substituí todas essas ideias de ser eleita, ser a mais bela e de final trágico”, nomeou a coreógrafa, que em 2020 recebeu do Swedish Arts Grants Committee uma bolsa Birgit Cullberg pelo seu trabalho artístico.
Em “A Sagração da Primavera – Memórias ternas de afeto queer”, os corpos de cinco performers queer atravessam uma ideia de multiplicidade que não se esgota na ideia de género, ou de origem cultural e social, e que vai além da história de cada corpo, para ultrapassar o normativo habitual.
“Ser trans tem muito a ver com essa reinvenção do belo, de criar outras lógicas de desejo, imaginários de sexualidade e sedução”, apontou, sublinhando que nesta celebração “há um reinventar” dessas conceções, formas de olhar, de relacionamento, “dentro da lógica de um género que é mais multiplicado”.
O centro do bailado de Nijinsky foi, assim, totalmente transformado: “Aqui ninguém é eleita, e todas as pessoas têm o seu lugar. É uma celebração que permanece coletiva e não depende de nenhuma morte”, reiterou, sobre a coreografia que se estreou nacionalmente no verão Festival Citemor, e também passou por Estocolmo e Gotemburgo, na Suécia.
Toda a dimensão plástica - figurinos, cenografia e luz – desta versão de “A Sagração da Primavera” foi também criada por Dinis Machado numa colaboração próxima com os bailarinos, salientou a criadora à Lusa.
A banda sonora original é da artista Odete e, em Lisboa, MC Coble, Ves, Mia Meneses, Ali Moini e Sumi Xiaomei Cheng vão interpretar esta peça que tem produção de BARCO/Dinis Machado em colaboração com Carol Goulart, e coprodução do Teatro do Bairro Alto, Dansens Hus, Citemor/Teatro Académico Gil Vicente e o Mil Milvus Artistic Reasearch Center.
Nascida no Porto, em 1987, Dinis Machado tem formação nas áreas da dança e artes visuais e vive em Estocolmo desde 2012.
Continua a trabalhar também em Portugal, onde tem apresentado alguns dos seus trabalhos, entre eles "Paradigma", "Dramaturgia", Consubstanciação", "In a Manner of Speaking" e “Normcore”.
Desde 2007 que Dinis Machado apresenta o seu trabalho em palcos de Alemanha, Austrália, Áustria, Croácia, França, Portugal, Reino Unido, Suécia e Uruguai, com companhias como a portuguesa O Cão Solteiro, as nova-iorquinas DD Dorvillier e Trisha Brown, a escocesa Weld e a inglesa Dance4, de Nottingham, e a Critical Path, de Sidney, na Austrália.
O seu trabalho conta com o apoio de instituições como o Conselho Sueco para as Artes e o Arts Council de Inglaterra, assim como da Direção-Geral das Artes, em alguns projetos.
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