“Esta geração protagonizou a grande mudança da História de Portugal, a que acabou com a ditadura, com a guerra, com as leis da sociedade patriarcal... Mas continuou a conviver com a ideia de um glorioso passado, em simultâneo com a ilusão de um futuro maravilhoso”, lê-se na obra publicada pelo Porto Editora.

Foi uma geração que viveu as grandes transformações do pós-Segunda Guerra Mundial, a nível económico e social, que assistiu ao termo das possessões coloniais francesas e britânicas, à eclosão de conflitos na Argélia e no Vietname, que atravessou as décadas de 1950 e 1960.

Era uma geração aberta ao exterior, por oposição ao "orgulhosamente sós" de Oliveira Salazar e da sua ditadura. Era uma geração que via na violência da luta pelas independências, o reflexo da violência das autoridades coloniais portuguesas sobre as populações africanas.

No seu novo livro, Matos Gomes explica que a “Geração D” é a geração da “Democracia, da Deserção, da Descolonização, das Doutrinas e do Doutrinar, da Discussão, da Dialética, do Desmistificar, do Desmobilizar, da Denúncia, da Desobediência, do Divórcio”, a geração que “viveu sob um regime de ‘doidos do império’" e e dele se libertou.

“Calhou-lhe – prossegue – ser a primeira geração que, pela liberdade e universalidade do voto, foi inteiramente responsável pelo seu presente e pelo seu futuro." E conclui: "O D dos Dilemas é também do Desafio e o do Desprezo pelos Desprezíveis da Geração D.”.

"Geração D", o livro, toma a forma de uma "autobiografia ficcionada de uma geração”. Não é um romance. Por isso, o autor quis assumi-lo com o seu nome de batismo, Carlos Matos Gomes: "É uma assunção desta pessoa que sou eu e que faz esta ficção tendo como narrador a personagem principal, que também sou eu", disse à agência Lusa.

Carlos Matos Gomes, 78 anos, assinou vários romances em que estava patente a temática africanista, sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz, como “Nó Cego” (1983), a sua estreia, “Soldadó” (1988) e “Os Lobos Não Usam Coleira” (1991).

“’Geração D’ é o reverso do ‘Nó Cego’, o primeiro romance que escrevi, em que pretendi transmitir aos outros o que a minha geração tinha passado durante a Guerra Colonial [1961-1974]. Como cada um de nós, que vínhamos de vários sítios - e cada um agregado numa e determinada unidade militar, que tinha sido sujeita a várias forças de dissolução -, como aquele grupo, que representava a minha geração, tinha reagido e enfrentado uma situação tão crítica”, afirmou.

“Passados 42 anos, é o retrato da minha geração depois de ter passado pelo pós-Guerra [Mundial], pela guerra [colonial], pelo 25 de Abril, pelo 25 de novembro [de 1975], pela construção desta sociedade que se ligou depois, [que] voltou a integrar-se na Europa, fez a descolonização e viveu os dilemas todos, do fim de uma epopeia. Nós tínhamos ainda sido educados na epopeia d’’Os Lusíadas’, e esta história é o fechar d’’Os Lusíadas’”, afirmou o autor “sem querer ser pretensioso”.

Matos Gomes deu conta das muitas conversas que teve com o seu amigo Salgueiro Maia, o capitão de Abril que tinha sido seu colega na Escola Nun’Álvares, em Tomar, com o qual refletia sobre o dever “para com os portugueses em geral", o dever de "restituir-lhes a liberdade e a dignidade”.

“A guerra [colonial] tinha sido determinada por um regime que os portugueses nunca tinham legitimado, e nós entendíamos que, se queremos fazer a guerra, os portugueses [tinham] de [a] legitimar”, disse enfatizando: “Nós fomos a primeira e a única geração que conheceu África no seu interior porque nos anteriores 400 anos, a África era bordejada”, vivida nas margens do continente, sobretudo no litoral, na costa.

“A violência que as autoridades portuguesas exerciam sobre as populações africanas refletia-se na violência com que a guerrilha nos respondia [aos militares]”, disse Matos Gomes à Lusa, referindo-se à situação nos diferentes países, então sob administração portuguesa, durante a guerra colonial.

"Isto levou-nos a perguntar o que nós fazíamos ali. Em segundo lugar, a perguntar em que sociedade vivíamos, em que não éramos informados nem nos pediam opinião”.

Segundo Matos Gomes, “havia um conflito" entre a sua geração, "a geração militar, e a geração política, dos estudantes, dos trabalhadores", com o regime. "Já não tínhamos nenhuma ligação ideológica nem vínculo ao regime que tinha sido estabelecido por [António de Oliveira] Salazar em 1933 e que vinha desde 1926”, quando, em maio desse ano, se deu o golpe militar liderado pelo general Gomes da Costa.

Estas nova geração política, militar entendia-se como europeia.

"Nós ouvíamos as mesmas músicas que se ouviam em Londres, conhecíamos os casos de Maio de 1968, as questões que estavam a ser colocadas na Alemanha [Federal] nos 'anos de chumbo' e também em Itália”, afirmou.

No caso dos militares, conheciam ainda a situação na Indochina, que culminaria na Guerra do Vietname - "e nesse sentido os livros do Jean Lartéguy foram muito importantes" -, e depois a situação na Argélia, que levaria à independência da antiga colónia francesa em 1962, quando a guerra colonial estava ainda no começo.

"Portanto, pertencíamos já a uma geração aberta ao exterior”, afirmou Matos Gomes. “O dilema que existia era: temos de nos integrar [no regime] ou derrubá-lo.”

"Para percebermos a História de um país ou de uma sociedade, uma das fontes, é exatamente a ficção. Há coisas que dizemos com mais facilidade através da ficção, e são mais próximas da verdade do que a História” que se baseia em estatísticas, relatórios e outros documentos, explicou.

“A literatura permite-me entrar dentro do pensamento dos protagonistas”, argumentou. A escrita reflete assim “a literatura como uma história”, e “a história também como uma parte da literatura".

Para escrever "Geração D", Matos Gomes recorreu a diferentes fundos documentais, como o Arquivo de Defesa Nacional.

"A nossa forma de estar no mundo é a integração europeia. A descolonização está na zona do mito: havia o mito do império, apesar de o império antes da guerra [colonial] ser muito pequeno. Havia antes o imaginário da Índia, que acabou antes de 1961. Tinha havido o imaginário do Brasil, que se mantinha e ainda se mantém um pouco. E, finalmente, havia o império de África e das colónias, etc... Porque em termos económicos - os interesses económicos - eram dominados pelos ingleses e pelos norte-americanos, pois as colónias africanas nunca foram de povoamento”.

Atualmente, diz Matos Gomes, o que nos define é “a integração europeia”.

Sobre as celebrações do 25 de Abril, o ex-militar reconheceu que “há um esforço muito grande de as levar à sociedade o mais alargada possível, nomeadamente aos jovens", mas "há sempre uma parte da sociedade que fica fora, há as classes visíveis e as invisíveis", afirma.

"Quando aparecem fenómenos como a recente votação no Chega [nas legislativas do passado 10 de março], o das claques [desportivas], nós perguntamos de onde estes tipos vêm. Vêm das classes invisíveis, e é aí que devemos fazer um esforço de lá chegar, explicar, e saber quem são eles.”