É certo que Louis-Ferdinand Céline causou e permanece incómodo, especialmente em França, pelas posições anti-semitas que defendeu através de diversos panfletos escritos enquanto a II Guerra devastava a Europa - a ponto de apenas recentemente a Gallimard os ter publicado (não sem polémica) novamente.

Mais interessante, no entanto, é a sensacional rutura que ele trouxe ao mundo da literatura a partir da sua primeira obra, um imediato e controverso “best seller” publicado em 1932, “Viagem ao Fim da Noite”, destinado a continuar com “Morte a Crédito”, lançado quatro anos depois.

Parcialmente autobiográfico, o livro relata as andanças e efemérides da tensa vida do médico Ferdinand Bardamu, que já havia aparecido como o seu “alter ego” no primeiro livro. A trabalhar num bairro pobre de Paris a troco de muito pouco, Bardamu narra em primeira pessoa, com uma linguagem visceral, repleta de asneiras, neologismos e frequentes referências sexuais, um quotidiano onde presencia a vida imunda e “inútil” de uma multidão de pobres (o contraponto seria dado pela futilidade dos ricos) - onde a contraditória ação de os tratar se dá em simultâneo com uma violenta visão do mundo que deixa muito pouco para uma perceção idealizada da condição humana.

Tudo isso era novo e visceral; ninguém escrevia assim nos anos 1930, nenhum escritor premiado dava voz daquela forma a um cortejo de falhados e miseráveis de todos os espectros e matizes - onde até mesmo longas litanias de citações de doenças e decrepitudes físicas espelhavam as mazelas do espírito.

Céline

Mas não era tudo: se também não se falava de sexo com aquela crueza, tampouco o livro se reduzia a isto - enquanto os sonhos e pesadelos acordados de um homem que não conseguia dormir (na vida real uma lesão adquirida na I Guerra Mundial levou Céline a ter problemas crónicos de insónia) davam vida a fantasias, frequentemente poéticas, que abriam as portas da escrita para a mais completa libertação.

Mas se ninguém escrevia assim, muitos o seguiram - um dos quais um célebre Henry Miller que, a viver em Paris nos anos 1930, ficou absolutamente em transe com o primeiro livro do francês, a ponto de reescrever todo o seu famoso “Trópico de Câncer”, lançado em 1934.

Não ficou por aí: Miller também repassou a fúria iconoclasta de Céline aos novíssimos inventores da “beat generation”; não é preciso ir muito longe para identificar a influência colossal sobre, por exemplo, William Burroughs e clássicos como “Junkie” e “Almoço Nu”. Ginsberg e Kerouac seguiram-lhe o rasto de diferentes maneiras, tal como Philip Roth e até Kurt Vonnegut, militante de outras lides, o cita no seu clássico “Matadouro 5” como um ícone anti-militarista.

Desta breve lista não poderia faltar, obviamente, Charles Bukowski, sobre o qual apetece dizer que toda a crueza e sentido de autenticidade que garantiu fama e proveito ao velho alcóolico “yankee” já estava presente (e exposto de forma mais densa) num livro como “Morte a Crédito”.

“Nossa vida é uma viagem / Através do inverno e da noite / Nós procuramos o nosso caminho / num céu sem luz”. A poesia que originou o título do primeiro romance de Céline dá o tom de uma obra que pode não ser das mais edificantes, mas certamente é um murro no estòmago que força o entendimento daquilo que outro dos grandes, Júlio Cortázar, definia como a vida - “essa grande confusão na qual estamos todos metidos”.