Se há realizadores que criaram marcas inconfundíveis, Wes Anderson construiu toda uma linguagem própria. Dos atores à organização da história, com planos geométricos e cores saturadas… A fórmula deu, em 2014, “Grand Budapest Hotel”, um dos melhores filmes do realizador americano, a que a New Yorker chamou “manifesto artístico”. É isso mesmo.

A história começa em flashback, de 2014 para 1932. É justamente no início da ocupação nazi e no advento da guerra que começamos. De repente, estamos dentro de um elevador vermelho (tão vermelho quanto o fato de látex de Britney Spears no vídeo de “Oops!...I Did It Again”). Um jovem imigrante de 17 anos, Zero Moustafa (Tony Revolori), está ao fundo com a mesma expressão impávida que mantém durante quase todo o filme. Afinal, é o seu trabalho como lobby boy – tem de ser atento mas discreto e antecipar todas as necessidades dos hóspedes. É o que lhe ensina M. Gustave (Ralph Fiennes), o concierge do hotel que, rapidamente, se torna seu mentor.

Gustave está sentado ao lado de Madame D. (Tilda Swinton) no elevador. Ela, uma condessa de 90 anos, é visita frequente do Grand Budapest, está apaixonada pelo concierge e é apenas uma das hóspedes a quem Gustave dedica a sua atenção especial. Gustave é acusado do seu homicídio.

Com o roxo das fardas dos empregados do hotel e o vermelho do elevador, Wes Anderson começa a contar-nos a história do majestoso e vibrante Grand Budapest, (cuja fachada faz lembrar o Overlook Hotel de The Shining). Parece uma casa de bonecas e, como tal, tem uma mão-cheia de boas personagens lá dentro.

O aprumado M. Gustave é a alma do hotel. É organizado, meticuloso, empático e dócil. Com o cabelo muito penteado, quase conseguimos cheirar a sua colónia, L’Air de Panache. Diz-se que outros atores foram contactados para o papel, mas Ralph Fiennes – também Voldemort – é brilhante na personagem e a história não seria a mesma com outra pessoa.

Zero é o lobby boy dedicado, com um bigodinho desenhado a lápis todas as manhãs em frente ao espelho do seu pequeno quarto.

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Agatha (Saoirse Ronan) é a paixão de Zero. Usa camisas com golas redondas e tranças no cabelo, a parecer uma bailarina. Trabalha na loja de doces divinais, Mendl’s, onde tudo é cor-de-rosa e azul céu.

Dmitri (Adrien Brody) é o filho sinistro de Madame D, que se insurge contra o testamento da mãe, por esta ter deixado a Gustave, como herança, o valioso quadro “Boy with Apple”. Nas cenas em que aparece, as cores doces dão lugar a tons escuros, como o seu cabelo.

Jopling (Willem Dafoe) traja igualmente de negro e conduz uma mota que diz tudo sobre o perigo iminente que a sua presença representa. É ele quem tira a vida ao advogado Kovacs (Jeff Goldblum).

Henckels (Edward Norton) é o chefe de polícia que tenta devolver a ordem ao sistema, a parecer um soldadinho de chumbo, bem fardado, de bigode revirado nas pontas.

Ludwig (Harvey Keitel) é o chefe dos ladrões que acompanham Gustave na sua fuga da prisão e está coberto de tatuagens que parecem ter sido desenhadas a caneta por uma criança e que lhe dão um ar nada ameaçador.

Ivan (Bill Murray) pertence à sociedade secreta que junta concierges de toda a parte. E uma das cenas mais caricatas do filme acontece quando, no topo de uma montanha coberta de branco, Zero e Agatha são casados por Gustave, com os membros da Society of the Crossed Keys a assistir, cada um com uma cor forte.

O elenco de luxo deste filme tem outros nomes sonantes, com quem Wes Anderson costuma trabalhar. Parece que quando o realizador chama, todos acorrem ao pedido. E a química no ecrã é evidente. Na fuga da prisão, os prisioneiros saltitam por cima das camas dos guardas, como se estivessem perfeitamente coreografados. É que “Grand Budapest Hotel” decorre todo em ritmo acelerado, e aquela química nota-se na perfeita sintonia entre as personagens.

Há, claro, momentos antítese, que querem marcar a comédia de Anderson: quando Gustave foge da prisão, passa longos minutos a agradecer a Zero em vez de se pôr em marcha. O guionista e realizador presa bem esses momentos ligeiros. No meio de tons pastel, Wes Anderson não hesita em meter na boca das personagens alguns palavrões fortes e rompe-nos aquela paz que a cor transmite, como se estivéssemos dentro de um quatro de Monet.

Em “Grand Budapest Hotel”, tudo parece uma obra de arte e nada é gratuito ou simplista. Não é que Wes Anderson tenha medo de trazer a realidade para dentro do seu filme, mas fá-lo no seu estilo muito próprio. Sim, há um tiroteio, mas não se vê uma gota de sangue derramada. E não o vemos, mas ficamos a saber que Gustave foi executado por forças nazis enquanto tentava defender Zero, num comboio. É como se o realizador tentasse manter o tom imaculado do seu filme. Como se não pudesse cair mancha de sangue nas cores doces de “Grand Budapest Hotel”.

Além das personagens, que podiam bem ser figuras de desenhos animados, as filmagens fazem-nos ver “Grand Budapest Hotel” como uma animação, em vários momentos. No tal tiroteio, só faltavam balões com cada disparo – “bang”! O funicular parece subir a montanha em stop motion. A perseguição de ski é quase um jogo de vídeo arcaico.

Anderson joga com os contrastes das cores (Gustave usa o roxo do hotel mas também os cinzas da farda da prisão); brinca com os planos (mais do que as simetrias arrumadinhas, para bem das nossas obsessões, é interessante vê-lo afastar as personagens ao ponto de parecerem figuras de lego); e muda mesmo a dimensão da resolução do ecrã quando passa por cada um dos quatro anos retratados na história.

A realização sem a história não faria “Grand Budapest Hotel” chegar tão longe. Wes Anderson escreveu-a, inspirando-se nas obras de Stefan Zweig e também no próprio escritor.

Como disse a New Yorker aquando do lançamento do filme, “Grand Budapest Hotel” é o manifesto artístico de Wes Anderson. Como uma autobiografia em vida de um dos realizadores contemporâneos mais interessantes, onde cabem o látex vermelho de Britney Spears e as flores cor-de-rosa nas águas do Sena que Monet pintou.

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