Em 2020, passam 60 anos desde que o público conheceu “Psico” e a indústria do cinema nunca mais foi a mesma. A frase é cliché. O que não é cliché são as personagens de Hitchcock, mestre do suspense, que se propôs fazer um dos melhores filmes de sempre com um orçamento reduzido, uma equipa de televisão e atores pouco conhecidos. Ao fim de todos estes anos, o filme continua a fascinar espectadores.
As tecnologias do cinema atual estão a anos-luz da era Hitchcock. Mas isso não significa que “Psico” (1960) tenha envelhecido ou perdido interesse. Pelo contrário, o filme que é apontado por muitos como o melhor do realizador britânico aguenta a passagem do tempo. A fórmula, essa, disse-a Hitchcock várias vezes: basta que se dê, de antemão, a informação necessária ao espectador. A antecipação vai crescendo até ao momento em que nos é revelado o desfecho. E, como dizia, a surpresa demora poucos minutos mas a antecipação pode levar uma hora.
Há livros escritos sobre este filme, documentários acerca das técnicas do realizador, teses sobre a sua visão e as obras que produziu. Aqui, de forma breve, ficam algumas observações sobre como Alfred Hitchcock aplicou a premissa do suspense em “Psico”.
1. O anti-spoiler original
Estavam proibidas as entradas nas salas de cinema depois da hora de início do filme e havia até cartazes do próprio Hitchcock a chamar a atenção para o cumprimento do horário, explicando que os cinemas tinham autorização para forçar o cumprimento daquela regra.
Ao público dizia-se que a protagonista, Janet Leigh, aparecia numa porção da história e perder algum desse tempo significava não ver toda a interpretação da atriz. Não é difícil de imaginar que Hitchcock teria outros motivos em mente, ele que, sendo um mesmo do suspense, não queria que os espectadores perdessem aquela cena inicial, quando a câmara entra através de uma janela de um hotel na cidade, os estores quase corridos, como que a espreitar o que se passa nesse quarto. E o que se passa é um encontro furtivo entre a secretária Marion (Janet Leigh) e Sam Loomis (John Gavin).
A ideia de um encontro sexual despertava, desde logo, a atenção do espectador. Estávamos nos sixties e ao público, conservador, ainda eram apresentados filmes com os filtros da moral e bons costumes. Mas a figura de Marion, usando roupa interior clara naquele quarto de hotel, foi provocadora q.b.. O encontro termina rapidamente, porque Marion estava na sua hora de almoço, e os dois separam-se sem que os apelos da secretária fossem ouvidos – ela queria uma relação oficial, ele não podia comprometer-se porque estava destinado a anos de pagamentos das dívidas dos pais e pensão de alimentos da ex-mulher.
As pistas desta primeira cena são realmente importantes. Hitchcock fez com que fossem lançados inúmeros apelos para que os espectadores não revelassem nada sobre a história.
2. Quando os planos falam pelas personagens
Na altura em que fez “Psico”, Hitchcock foi buscar uma equipa habituada ao ambiente televisivo, para fugir ao formato de grandes orçamentos cinematográficos que tinha experimentado nas suas produções anteriores. Reduzir o investimento no filme permitiu centrar tudo no essencial: estimular a imaginação do espectador e trabalhar com as perceções. Para isso, a montagem é fundamental.
Depois de Marion ser incumbida de depositar no banco os 40 mil dólares que foram entregues ao seu patrão por um cliente de conduta duvidosa, a secretária vê aí uma oportunidade de pagar as dívidas de Sam, que os impediam de estar juntos. Em casa, vemo-la preparar a fuga. Foca o envelope com o dinheiro em cima da cama. Sem interromper a cena, a câmara leva-nos o olhar para a mala cheia de roupa. Depois, Marion – agora vestida com roupa preta (as cores são usadas como expressão moral da conduta das personagens) – olha para o dinheiro. Sabemos que está a debater-se internamente com a decisão, sem precisarmos de diálogo. O subtexto é reforçado quando Marion se olha ao espelho e depois volta a direcionar a atenção para o envelope. Entre outros planos, este gesto repete-se.
A viagem começa e Marion depara-se logo com um momento de tensão, quando para o carro e, à sua frente, atravessam o seu patrão e o cliente a quem roubara os 40 mil dólares que devia estar a depositar no banco. Ao patrão, tinha dito que se sentia doente e iria para casa. Quando se cruzam, o espectador mergulha nas preocupações de Marion, primeiro, por causa da música de Bernard Herrman, de ritmo e tons ameaçadores. É a mesma peça que havia acompanhado o início do filme, como que a sinalizar o momento em que a protagonista se desvia da retidão moral.
Enquanto conduz, vemos quase sempre o rosto de Marion, tenso e preocupado. Mas ouvimos a voz do seu patrão, a perguntar onde estará a secretária e como poderia duvidar de alguém com quem trabalha há dez anos… O artifício é simples mas o resultado é extremamente sofisticado.
Os close-ups de Hitchcock voltarão a ser úteis noutros momentos importantes do filme, como a famosa cena do chuveiro.
3. Mandamento para a vida: evitar o cliché
Quantas vezes adivinhamos o desfecho de um filme enquanto vamos a meio? Não é difícil imaginar que Hitchcock teria horror a isso. Ele próprio explicou que o trabalho de escrita do guião consome muito tempo porque é preciso garantir que se evita o cliché.
O guião de “Psico”, escrito por Joseph Stefano, foge ao cliché que entregaria de imediato a história do filme. Quando Marion se vê obrigada a refugiar-se da chuva, durante a fuga, estaciona junto a um hotel meio abandonado, porque já não passa ali perto a via rápida. Marion é recebida por Norman Bates (Anthony Perkins), um homem alto, jovial, com um rosto empático e uma voz convidativa.
Norman, que tem o entusiasmo de uma criança, conta a sua história à única hóspede do Bates Motel quando a convence a cear com ele no escritório da receção. Norman vive com a mãe na casa principal, dando-lhe os cuidados necessários para a idade e o estado de doença mental que tem. Quando Marion sugere que a interne num lar, o gerente do hotel perde o ar jovial e rejeita a ideia com veemência. Além da mãe, o hotel ocupa-lhe o dia-a-dia, ainda que não receba praticamente clientes. A família ficou reduzida aos dois, conta, depois de o pai morrer quando Norman era criança. A mãe voltara a casar, mas a morte do padrasto deixou-os novamente sozinhos. A hóspede pergunta-lhe se não tem amigos. Com um olhar pesado, responde calmamente: “a boy’s best friend is his mother”.
Simpatizamos com Norman Bates, aquele adulto com ar de menino confinado à solidão de um hotel fantasma que se sujeita aos abusos verbais da mãe por devoção familiar.
No livro em que “Psycho” se baseia, Norman Bates tem outras características, uma aparência menos afável que repulsa mais do que atrai. Mas essa descrição era demasiado evidente e poderia levar o público a suspeitar da personagem. Hitchcock brinca com a nossa mente e, por isso, contratou Perkins, um ator menos conhecido, que pouco se assemelhava à imagem original de Bates.
Aquela devoção familiar confirma-se quando Norman corre ao quarto de Marion, ao aperceber-se de que a mãe matou a hóspede. Na cena do chuveiro, Hitchcock faz uma das suas melhores edições, com planos muito rápidos e curtos: da faca da atacante passamos para a cara apavorada de Marion; logo depois, a câmara está por baixo da água que cai do chuveiro; mais uns golpes (os sons da faca a entrar no corpo de Marion são, na verdade, golpes em melões, truque que a equipa técnica arranjou para sonorizar a cena); por fim, um close-up num olho imóvel de Marion, com o rosto tombado sobre o chão.
O ataque é demorado – e levou uma semana a gravar, contou a própria Janet Leigh num relato que vale a pena conhecer. É que a cena tornou-se icónica e mesmo quem não viu o filme conhece de cor o momento em que a sombra de uma figura segurando uma faca se aproxima daquela mulher, por detrás da cortina do chuveiro. A música de Herrman acrescenta tensão ao momento e diz-se mesmo que Hitchcock teria imaginado o ataque em silêncio, ideia que deixou cair para usar a banda sonora do compositor.
O mestre do suspense abdicou aqui de um dos maiores clichés que conhecemos dos thrillers. O sangue vigoroso que realizadores (como Tarantino) utilizam sem moderação era dispensável na cena, porque – voltamos a dizer – a Hitchcock bastava que o espectador absorvesse a informação dada para imaginar violentos golpes e uma morte fatídica. Em vez de litros e litros de sangue, a água do banho leva apenas pequenas quantidades de um líquido que era, na verdade, chocolate. Depois de testar outras substâncias, o realizador considerou que o chocolate tinha uma consistência mais credível. Aqui, não vemos sangue a jorrar pelas paredes brancas nem assistimos ao momento em que a faca entra no corpo de Marion, mas a cena não perde credibilidade. “Psico” é um filme a preto e branco também por este motivo, para evitar uma cena demasiado gráfica que desviasse a atenção do essencial.
4. Uma história não linear
O essencial é que a nossa protagonista morre a meio caminho da história. E a nossa atenção é transferida para Norman Bates, ele que limpa o sangue da cena do crime e desfaz-se do corpo, deixando-o na bagageira do carro de Marion, com os seus pertences (entre eles, 40 mil dólares enrolados um jornal), que irá empurrar para o lago ali perto.
Até aqui, acompanhámos as escolhas de Marion, ela que decide cometer um crime para poder juntar-se ao namorado e acabar com os encontros fortuitos. Depois, ao falar com Norman no escritório (sobre a vigia atenta e suspeita de um grupo de pássaros embalsamados pelo próprio), decide pôr fim à fuga, regressar e devolver o dinheiro. A nossa protagonista redimiu-se. Mas antes de poder recuar, morre. E ali está o homem que encobre prontamente o erro da mãe e segue com a sua vida, com ar de consciência tranquila quando o detetive Arbogast (Martin Balsam) enviado pela irmã de Marion, Lila (Vera Miles) o aborda para apurar o paradeiro dela.
Arbogast entra na casa principal do hotel para questionar Mrs. Bates sobre Marion, depois de ver a figura da mulher ao longe numa janela. Ao subir as escadas, a câmara de Hitchcock faz outro dos planos mais conhecidos: do alto da casa, observamos os passos de Arbogast a subir as escadas e a virar, para ser surpreendido por uma mulher que corre para ele de faca na mão. O plano seguinte é a cara do detetive com um rasgo de sangue, ele que cai pelas escadas ao ser atacado. Também esta personagem desaparece rapidamente do enredo.
O nosso olhar, órfão, foca-se agora em Lila e Sam, que vão ao hotel para continuar a investigação, descobrir onde está Marion e devolver o dinheiro roubado. Só que o dinheiro já não importa, já mal nos lembramos dele. O que interessa agora é Norman Bates, cujo comportamento começa a revelar-se suspeito aos olhos dos novos protagonistas.
Lila retoma a missão de Arbogast e escapa até à casa principal. Porque Hitchcock se esforçou muito para manter o suspense desta história, diga-se apenas que Lila não encontrou Mrs. Bates, porque Mrs. Bates já não existia. Os que já conhecem “Psycho” perceberão a ironia de Hitchcock ter inclusivamente falado aos jornalistas sobre a atriz que queria escolher para interpretar Mrs. Bates.
No final do filme, Hitchcock teve de incluir uma cena anticatártica, em que um psiquiatra resume em modo de explicação clínica o desfecho do filme. Diz-se que o estúdio terá forçado esta cena, para que o público compreendesse a história. Hitchcock acedeu, sabendo que estava demasiado à frente do seu tempo. Ou que não pertence a esse tempo nem a qualquer outro. Porque este filme não envelhece, como se disse, e mantém-se como um dos melhores de sempre, uma lição de guionismo e edição que prima pela simplicidade e eficácia da premissa.
“Psico” é um filme de suspense perfeito e a prova disso mesmo está na última imagem que vemos de Norman Bates, em que o seu rosto se funde com uma caveira. Hitchcock teve a última palavra.
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