"Enquanto realizadora, sinto que tenho de fazer filmes para mim, para as crianças, para a minha família, com histórias autênticas. Quero que as crianças vejam filmes que as façam amar o cinema, que lhes falem das suas vidas e emoções e que as façam rir", diz Sarah Smith ao SAPO Mag numa entrevista virtual por Zoom a propósito de "Ron Dá Erro".
A aventura de animação, que chega esta quinta-feira às salas, nasceu da colaboração da britânica (que assumiu ainda as funções de coargumentista e produtora executiva) com o conterrâneo Jean-Philippe Vine e o norte-americano Octavio E. Rodriguez, que também falaram ao SAPO Mag da experiência de fazer um filme a seis mãos. Nas vozes da versão original, há estrelas como Zach Galifianakis, Jack Dylan Grazer, Olivia Colman, Ed Helms, Justice Smith ou Rob Delaney. Já Francisco Fonseca, Sabri Lucas, Martinho Silva, Maria de Aires, Henrique Gomes ou Guilherme Macedo foram alguns dos nomes que asseguraram a dobragem em português.
"Quero que as crianças sintam entusiasmo pelo cinema da forma que senti, com grandes experiências cinematográficas no grande ecrã, que é onde [os filmes] devem ser vistos", sublinha Smith. Felizmente para os realizadores - e também para o público -, "Ron Dá Erro" não fica limitado aos ecrãs do streaming, como poderia ter acontecido caso se tivesse estreado na fase mais crítica da pandemia. E não merece ser descoberto apenas pelos mais novos. A história do pequeno Barney e de Ron, o seu B-bot (um dispositivo criado para ser o seu melhor amigo), é uma aliança feliz de coração, ideias e humor inspirado que pede espectadores dos 7 aos 77, apesar de se centrar no universo juvenil e de se dirigir aos mais novos em primeiro lugar.
"A ideia inicial foi tornar o iPad numa personagem de animação, para explorar a relação entre as crianças e os seus equipamentos tecnológicos", explica Smith. Embora possua algumas funcionalidades semelhantes à de um iPad, o B-bot também é parente próximo de um robô e consegue moldar-se à personalidade e gostos do dono. Ou pelo menos é isso que acontece até Ron entrar em cena sem as configurações de segurança adequadas e com propensão para o erro.
Da Ovelha Choné a "uma espécie de palhaço avariado"
Jean-Philippe Vine, cujo currículo inclui projetos na Pixar e nos estúdios britânicos Aardman, conta como a faceta desregrada de Ron foi certeira para a maioria das cenas cómicas. E aponta ecos de uma popular série de animação da qual foi realizador. "'A Ovelha Choné' é comédia puramente visual, tem muito slapstick e humor observacional. Adoro isso e tentámos fazer muito disso com a personagem do Ron, em especial, que é uma espécie de palhaço avariado [risos] e que nos abre muitas possibilidades na abordagem ao timing cómico, gags e situações ridículas e divertidas", compara.
"Quisemos contar histórias que se dirigissem sobretudo a crianças e com assuntos com os quais lidam no mundo de hoje. E 'Ron Dá Erro' é muito sobre isso, sobre a amizade nas redes sociais e tudo o que isso implica", assinala. "Somos todos pais, na equipa criativa, e não crescemos com telemóveis ou redes sociais. Os nossos filhos estão imersos num mundo diferente e estamos a tentar perceber qual a forma saudável de lidar com as redes sociais e com a amizade. Isso foi um fator determinante para esta história".
Peter Baynham, autor do argumento em conjunto com Sarah Smith, salienta que a ambição foi "fazer um filme divertido" em vez de um "didático que apelasse a que as crianças largassem o telemóvel ou o iPad". Até porque, de acordo com o britânico (que assinou os guiões de "Hotel Transilvânia" ou de aventuras de Borat no pequeno e grande ecrã) "essas coisas não vão desaparecer, estão nas nossas vidas e mudaram o nosso mundo de uma forma positiva e às vezes assustadora".
Sarah Smith acrescenta que a equipa tentou "conjugar vários pontos de vista: dos responsáveis da empresa que cria a tecnologia, das crianças, o nosso... algo que encoraje a conversa em família, em vez de dizer qual é o caminho".
Locksmith Animation, do Reino Unido para o mundo
"Ron Dá Erro" tem a responsabilidade de ser a primeira longa-metragem da Locksmith Animation, o primeiro estúdio de animação por computador britânico, criado por Sarah Smith e Julie Lockhart em 2014. "Quisemos mostrar que conseguimos fazer filmes de animação CGI de grande qualidade e competir com os grandes estúdios. É uma ambição pequenina [risos]. Temos muito talento e uma grande comunidade criativa em Londres", diz Smith.
"Somos um pequeno estúdio, mas muitos de nós já trabalharam em grandes estúdios, como a Disney, Aardman, Lucasfilm... Mas apesar de termos essa experiência, foi um desafio tentar fazer um filme com uma grande história numa nova companhia", recorda Jean-Philippe Vine a propósito deste batismo que resulta de uma coprodução com a 20th Century Studios.
Octavio Rodriguez realça que através da Locksmith Animation pode "contar histórias ricas e diversas, especificamente com criadores do Reino Unido". Mas diz não esquecer as lições da sua passagem pela Pixar (foi animador em "Coco" ou "The Incredibles 2: Os Super-Heróis"), contadora de histórias com grande foco "no coração, nas emoções, e no impacto que poderão ter no público", elementos que tentou preservar em "Ron Dá Erro".
Smith, que se tinha estreado como realizadora de longas-metragens há dez anos, em "Arthur Christmas" (ao lado de Barry Cook), considera que criar um filme de animação "é um pouco como um jogo de râguebi". "Sofremos ataques de todas as direções [risos]. Há tantas coisas a tratar: convencer pessoas a apostar nele, definir o orçamento, as muitas mudanças de Hollywood... e ainda tivemos uma pandemia global. Para além do facto de termos um estúdio de Londres a fazer filmes destes pela primeira vez. Por isso, tivemos de tentar continuar a correr com a bola pelo campo", lembra.
"Tirei lições do 'Arthur Christmas' e tive a perceção daquilo a que o público reagiu melhor. Mas depois de fazermos o primeiro, tentamos elevar a fasquia", acrescenta.
Baynham defende que "cada filme é um filme. E no final do processo, aprendes a fazer esse filme. Depois, há outros. Tentámos fazer com que este fosse divertido e refrescante".
Entre a casa e a escola
"Partimos para este filme das relações com as nossas próprias famílias, para que tudo parecesse verosímil e autêntico", conta Jean-Philippe Vine. "A avó do Peter é galesa e tem muito em comum com a personagem da avó do protagonista", exemplifica.
Além de ter a tecnologia no centro, "Ron Dá Erro" é uma história sobre pertença familiar. E as origens têm um peso acrescido na vida de um protagonista de ascendência russa, que tenta conjugar essa herança cultural com o dia a dia numa escola ocidental. "O Barney é um miúdo que tem alguma vergonha da sua vida familiar. Mas na jornada que faz no filme, apercebe-se de que os seus familiares são muito fixes. Falei com amigos que lidaram com o facto de serem imigrantes, ou filhos de imigrantes, e de como tentaram perceber quem são, o que pode ser um grande desafio. O filme é sobre abraçar as facetas das tuas origens que te fazem ser quem és", descreve o realizador.
"Quando crescemos, acabamos por formar as nossas tribos", diz Octavio Rodriguez. "E aqui as personagens acabam por fazer isso através da sua tentativa de sobrevivência nas redes sociais". O cenário, no entanto, é pouco favorável para o protagonista, fora da esfera tecnológica. "Não é que os colegas queiram ser mesquinhos com o Barney, mas a interação digital é a forma de encontrarem a sua tribo e mais pessoas que gostem delas e que interajam com elas. Quando o Barney olha para eles, parece que têm todos uma vida ótima, mas eles também estão a tentar encontrar o seu lugar".
Apesar desse fosso tecnológico e da solidão que toma conta do quotidiano do protagonista, "Ron Dá Erro" evita maniqueísmos na caracterização dos colegas, embora pareça cair neles nas primeiras cenas - mérito de uma escrita que faz com que os espectadores se interessem pelas personagens. "Adoramos as personagens e esperamos que as pessoas gostem delas tanto como nós. Temos falado muito na possibilidade de curtas-metragens com o Ron ou mesmo de uma nova história que continue esta, mas ainda está tudo em aberto", avança Jean-Philippe Vine.
Entre os primeiros espectadores contam-se os filhos da equipa criativa, e são particularmente exigentes. "Acho que vão ser brutalmente honestos [risos]. Se tivermos feito alguma coisa que considerem ultrapassada, de certeza que me vão chamar a atenção", salienta o realizador. "Estou ansioso para o ver com eles. Quero muito que tenham a experiência de o ver no cinema", confessa Octavio Rodriguez. E a partir desta quinta-feira, essa também é uma experiência a que os espectadores portugueses podem aderir...
TRAILER DE "RON DÁ ERRO":
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