De 21 de agosto a 6 de setembro, a capital vestirá os seus habituais trajes cinéfilos para receber o Indielisboa, num ano com visíveis mazelas trazidas pela atípica atualidade ainda marcada pela pandemia.
Na 18.ª edição, a resistência continua como a palavra de ordem. A resistência pela preservação da sala e a reintrodução do filme no seu habitat natural. O Indielisboa assume esse desafio, com a maturidade adquirida em quase duas décadas de história.
O SAPO Mag conversou com Miguel Valverde, diretor e um dos programadores do festival, para nos falar sobre esta determinante edição.
Mais um ano, a mesma pandemia. Que procedimentos e protocolos o festival irá tomar nesta edição?
A adaptação dos festivais de cinema e de outros eventos culturais em Portugal a estes novos tempos tem sido um desafio difícil. No entanto, para o IndieLisboa, a edição de 2020 foi uma das mais bem conseguidas de sempre, não só em termos de programação, como do espírito que se criou ao longo dos 12 dias que durou o festival. Parecia que tínhamos chegado ao fim de uma maratona e que iríamos ganhar uma medalha, tal era o espírito com que estávamos. Em 2021, a preparação já foi feita tendo em mente a possibilidade de um novo adiamento do festival de abril para agosto, embora a preparação tenha sido feita a pensar que o festival decorreria em abril. Quando em março constatámos essa impossibilidade, foi pôr em marcha o plano B. Desta vez, já sabíamos como fazer e toda a preparação foi feita de forma mais fluída e com vários planos B e C em cima da mesa. Relativamente a procedimentos, toda a equipa faz testagem obrigatória, as salas têm planos de contingência ativos e vamos continuar a ter apenas 50% de público em sala, embora o governo tenha “libertado” um pouco essa obrigação. No entanto, para salas no interior, essa logística compromete a distância de segurança e, por isso, em articulação com as salas, vamos manter essa quota. As sessões, na maioria das salas, continuam a ter uma hora de intervalo para se conseguir fazer a limpeza e desinfeção e as máscaras continuam obrigatórias.
Olhando para a vossa Competição Nacional, que implicações a COVID teve na criação e abordagem destes filmes e na sua seleção?
Confesso que, olhando para os filmes selecionados, quatro longas e 19 curtas, não consigo ver uma relação direta. Ou seja, há filmes que estavam em produção há algum tempo e que só concretizaram as montagens durante 2020 ou 2021. A título de exemplo, a longa-metragem “Simon Chama” é um filme rodado ao longo de 6-7 anos. Ou “Granary Squares”, cuja ideia de princípio foi filmar uma praça a partir de um único ponto de vista, com muitas pessoas na rua, o que demonstra que foi claramente filmado antes. Nas curtas-metragens, contudo, há a história de “Tracing Utopia”, rodado em Nova Iorque, que deveria ser um documentário em presença, mas que a COVID-19 impediu essa filmagem e transformou-se num híbrido com a utilização de imagens de telefones móveis, dispostas em plano, criando um lado de experimentação cuja ideia não estava tão patente ao início. Quanto ao processo de seleção, apenas constatámos que foram realizadas menos longas-metragens em Portugal porque recebemos menos candidaturas. Vários projetos que estávamos a acompanhar tiveram que interromper as suas rodagens e adiá-las.
O que destacaria na programação?
É sempre ingrato para um programador estar a pedir para escolher um “filho-filme” em detrimento de outro. Contudo, de um ponto de vista geral, a programação em 2021, no ano da maioridade do IndieLisboa (esta será a nossa 18.ª edição), é muito combativa. Realço vários filmes sociais e políticos, “Les prières de Delphine” [Competição Internacional], “Radiograph of a Family” [Competição Internacional], “Loin de vous j’ai grandi” [Silvestre], “Au coeur du bois” [Silvestre], “Flee” [Sessões Especiais] ou “The Shift” [Competição Nacional e Internacional]. E há, claro, toda a obra da Sarah Maldoror para se descobrir (numa retrospetiva inédita em todo o mundo, uma vez que serão exibidos filmes que nunca foram mostrados antes, a não ser aquando da sua primeira exibição) e Camilo Restrepo, o colombiano que filma universos realistas e, ao mesmo tempo, poéticos; uma obra muito recente a descobrir. E depois há comédias dramáticas na competição internacional, como “Shiva Baby”, ou na Silvestre, o filme que venceu o Urso de Ouro no último Festival de Berlim, “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, de Radu Jude. Em tempo de Jogos Olímpicos, há também o olhar maravilhoso de Julian Faraut sobre a equipa de vólei feminina japonesa que venceu a medalha de ouro nos Jogos de Tóquio em 1964 – o filme chama-se “Les sorcières de l’orient”. Faço ainda uma chamada de atenção para “Spree” [Boca do Inferno], cujo protagonista é Joe Keery, o jovem herói da série da Netflix “Stranger Things”.
Olhando um pouco para a “polémica” Palma de Ouro em que o cinema de género vingou num festival de uma dimensão e mediatismo como Cannes, e comparando com a vossa secção mais arrojada, Boca do Inferno, sente que o género poderá finalmente sair da marginalidade, como por exemplo, figurar numa competição principal de inúmeros festivais internacionais, incluindo o Indielisboa?
O cinema não deveria ter nem género, nem formatos, nem fronteiras. Cannes e os outros festivais internacionais de cinema parecem que começam a ter consciência disso. Se olharmos para as suas seleções oficiais, os documentários ainda não entram também nas competições principais desses festivais e os filmes de animação também são uma raridade. Só o Festival de Berlim, sob a direção de Carlo Chatrian, começa também a quebrar esse tabu. O IndieLisboa nasceu sob a ideia de que um filme é um filme, independente do formato, género ou tema, daí que seja dos poucos festivais no mundo que dá tanta importância à curta-metragem como à longa-metragem, com competições paralelas. O IndieLisboa é um festival generalista, onde tudo é possível. E por isso, um filme sobre músicos já venceu o IndieLisboa - “The Ballad of Genesis and Lady Jaye”, de Marie Losier; “Solar Walk”, um filme de animação de Reka Bucsi, foi também premiado, e vários filmes de pendor mais fantástico, a par de um conjunto enorme de documentários distinguidos com o Grande Prémio. É neste campo precursor que o IndieLisboa está desde 2004. Por isso, só podemos aplaudir que o Festival de Cannes comece a abrir um pouco os seus horizontes.
Com a migração cada vez mais vincada para o online, os festivais continuarão a ter a sua importância cultural?
É engraçada esta questão porque, para mim, a questão dos formatos (físico ou online) não são incompatíveis. A experiência é diferente e sempre será. Posso ver nos meus livros de história a escultura da Antiguidade Clássica Vénus de Milo ou a Vitória de Samotrácia, saber todas as suas características, ver tudo o que possuem, vê-las de todos os ângulos, até filmadas, mas a experiência de as ver ao vivo, no Museu do Louvre, foi e será sempre inigualável. Nunca esquecerei o choque que tive com a monumentalidade das duas peças. E é isso que sinto quando vejo um filme numa plataforma de streaming, em casa, sempre perturbado por condições exteriores a nós, que têm a ver com o facto de estar em casa, com a multiplicidade de coisas que podem acontecer enquanto estamos a ver um filme ou uma série. Quando estou numa sala de cinema, em silêncio, no escuro, com uma enorme tela, com um som incrível, toda a experiência é imediatamente diferente. E gosto muito desta sensação. E acho que muitas pessoas partilham comigo dessa vontade, no presente e no futuro. De um outro ponto de vista, não é possível ignorar a importância das plataformas de streaming no atual contexto e este ano iniciamos uma parceria com a Spamflix, que tem um catálogo vocacionado para filmes de cinema fantástico e de terror. Neste sentido, alguns títulos da secção Boca do Inferno irão estrear no festival e depois ficarão disponíveis para aluguer na plataforma, como parte da programação online do festival.
O que motivou a escolha do filme de abertura - “Summer of Soul” - visto que será um filme que estará presente no catálogo Disney + ainda antes do festival?
Precisamente o que disse atrás. Para um filme com a importância do “Summer of Soul”, sobre um momento único na história, um evento único na história – um "black music" festival - eclipsado pelo festival de Woodstock, um filme político que fala sobre um movimento de libertação e expressão, que teve a participação que teve como se comprovam pelas imagens registadas na altura (mas eclipsadas da opinião pública), todas as exibições do filme são importantes. Quanto mais espectadores virem o filme melhor. Quantos mais cidadãos tiverem a oportunidade de serem confrontados com este filme, melhor. E depois, quem já viu em streaming, percebe a sua importância e vai querer vê-lo na sala de cinema, estamos absolutamente crentes nisso. E que melhor forma de chamar a atenção para um filme importante no festival que convidá-lo para abri-lo? Assim, o IndieLisboa tem todo o prazer em anunciar que “Summer of Soul” é o seu filme de abertura, desta edição 18, recheada de surpresas. "Summer of Soul" e Sarah Maldoror. Está tudo dito!
Próximos passos para as futuras edições do Indielisboa?
O IndieLisboa é um festival que se reinventa a cada ano, fruto de um trabalho coletivo desenvolvido por uma equipa constante, que trabalha há muitos anos junta e que quer apresentar o seu melhor. Há muitas ideias ainda por experimentar, que estão faladas, mas será necessário investimento, seja da parte de privados, seja de instituições públicas. O Festival IndieLisboa tem crescido sustentadamente, teve um pico enorme em 2010, ano em que a crise económica afetou de forma determinante Portugal e os eventos culturais, com muito do seu público a emigrar. Conseguimos sempre ultrapassar todas as dificuldades e há dois anos tinha sido a nossa segunda melhor edição de sempre [depois de 2010]. A COVID-19 veio de novo impedir esta subida possível e estamos de novo a trabalhar com orçamentos parecidos com 2010. Como o festival já está muito diferente, mas o orçamento se mantém sem alteração, é urgente e necessário que as empresas privadas e as entidades públicas e privadas olhem com atenção para o nosso trabalho e para as nossas capacidades e potencial de crescimento e nos ajudem a conquistar o lugar natural, que é estarmos entre os melhores festivais de cinema da Europa.
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