Apesar do
Festival de Cinema de Cannes se ter tornado o símbolo máximo de um evento que celebra o cinema enquanto arte, as principais motivações para a criação do evento foram essencialmente políticas: por um lado, a vontade de criar um certame que rivalizasse em prestígio e impacto com o Festival de Cinema de Veneza (criado em 1932 e ainda hoje o festival do género mais antigo dedicado à Sétima Arte), e por outro, e principalmente, o escândalo gerado pela interferência dos governos fascistas de Itália e da Alemanha na escolha da Selecção Oficial da mostra veneziana.
Assim, o objectivo era o de criar um festival internacional de cinema que privilegiasse a arte e onde a liberdade de expressão para além de qualquer influência política fosse uma regra absoluta. A luxuosa cidade balnear de Cannes foi a escolhida e a data do primeiro festival foi marcada para 1 a 20 de Setembro de 1939, com
Louis Lumiére a presidir ao evento.
Infelizmente, o certame, com tudo pronto, nunca chegaria a realizar-se já que a 1 de Setembro a Alemanha invadiu a Polónia e dois dias depois a França declarou guerra à nação chefiada por Hitler.
Com o fim da guerra, a ideia do evento é retomada e o primeiro Festival de Cannes decorre entre 20 de Setembro e 5 de Outubro de 1946, com nada menos que 11 filmes a vencerem o troféu principal do certame. Logo aí se viu que as coisas não corriam bem, até pela falta de fundos para o evento e a não existência de um espaço nobre para as projecções.
A credibilidade custou a chegar. Em 1948 e 1950 o festival não se realizou por falta de dinheiro, e a grande profusão de prémios limitou o interesse real das escolhas. Em 1949, deu-se um primeiro passo nesse esforço, com o Grande Prémio a ser atribuído apenas a um filme,
«O Terceiro Homem», eliminando assim a imagem de festival de consensos, e as projecções a terem lugar no recém-inaugurado (mas ainda inacabado) Palais des Festivals.
Em 1951, o Festival de Cannes arranca em força já com tudo no sitio certo: uma verdadeira secção competitiva, a presença de estrelas do cinema mundial, Sol e luxo com fartura, os melhores filmes do mundo em presença e ainda uma incomparável máquina promocional por trás de cada um deles.
Em 1953, uma actriz praticamente desconhecida, passeou-se pelas praias de Cannes e tornou-se uma super-estrela:
Brigitte Bardot. De lá a cá, têm sido milhares as aspirantes a actrizes a tentar o mesmo truque, no que se tornou um dos emblemas máximos do festival.
Em 1955, o prémio principal, que até então era desenhado em cada sessão por um artista contemporâneo diferente, passa a ser a hoje lendária
Palma de Ouro, e quatro anos depois a vertente comercial do evento é assumida com a criação do
Marché du Film, hoje em dia o «mercado» mais importante do mundo na área do cinema.
Cannes torna-se então o local de consagração de cineastas até então só reconhecidos por alguns críticos (
Federico Fellini,
Luchino Visconti) mas também o local de descoberta de novos realizadores e eclosão de novas tendências (em 1959, a Nouvelle Vague explodiu no festival com
«Os 400 Golpes», de
François Truffaut).
O mundo real, contudo, não deixou de interferir no festival, não só na postura «engagé» dos filmes mas mesmo de forma prática e brutal: em 1968, o evento é parado a 19 de Maio quando um grupo de realizadores (entre eles,
Jean-Luc Godard,
François Truffaut,
Louis Malle,
Roman Polanski e
Claude Lelouch) toma de assalto o Palais e interrompe as projecções em solidariedade com as manifestações estudantis que se faziam então sentir por todo o país e que levariam ao encerramento dessa edição do certame.
Entretanto, iam sendo acrescentadas secções à Selecção Oficial do Festival: em 1962, surgiu a
Semana Oficial da Crítica, com primeiras e segundas obras de jovens realizadores; em 1969 a
Quinzena dos Realizadores, com obras fora de competição de cineastas relevantes; em 1978 a
Câmara de Ouro, que premeia uma obra de estreia em qualquer área do evento, e a secção
Un Certain Regard, uma selecção de obras de estilos e visões mais experimentais e arrojados; e, finalmente, em 1995, a
Cinéfondation, composta de filmes de escolas de cinema de todo o mundo.
Em 1983, operou-se uma mudança fundamental no figurino do Festival, que até então continha as suas estrelas no espaço limitado do Palais. A partir desse ano, nasceu um novo e inicialmente controverso Palais, desde logo apelidado de «bunker», que se torna o centro nevrálgico do evento e reforça o lado espectacular da cerimónia. É a partir daqui que se torna possível estender o gigantesco e hoje mítico tapete vermelho que culmina na incontornável escadaria, em que as estrelas se passeiam pelas objectivas de milhares de fotógrafos de traje de gala e outros tantos cinéfilos e mirones. Inicialmente muito criticado, o novo espaço e a cerimónia da chegada dos actores a que passou a ser associado tornou-se um dos símbolos de Cannes.
A polémica, aliás, nunca deixou de estar presente no festival, seja pela intrusão frequente do «blockbusters» mais abertamente comerciais de Hollywood por entre a selecção oficial embora fora de competição (como foi o caso mais gritante de
«Tróia» ou
«O Código Da Vinci»), seja pela imensa celeuma que geraram determinados filmes ou até pela atribuição da própria Palma de Ouro a obras tão incendiárias como
«Ao Sol de Satanás» e
«Farenheit 9/11».
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