A entrevista à Lusa aconteceu a propósito da estreia este mês em Portugal, no festival Monstra e também no circuito comercial, do documentário de animação “Mataram o pianista”, dos espanhóis Fernando Trueba e Javier Mariscal, do qual Humberto Santana foi um dos coprodutores, pela Animanostra, que dirige.
“Já tínhamos tido coproduções em séries de televisão. Em cinema foi a primeira vez, com uma obra desta envergadura”, numa parceria entre Espanha, França, Peru, Países Baixos e Portugal, com a participação de uma dezena de animadores portugueses, disse Humberto Santana, de 64 anos e mais de trinta de carreira.
Esta participação da Animanostra em “Mataram o pianista”, tal como a da produtora Ocidental Filmes em 2023 no filme “Interdito a cães e a italianos”, do francês Alain Ughetto, espelha um pouco o que está a acontecer no cinema de animação em Portugal.
Segundo Humberto Santana, atualmente existe abertura para que os produtores portugueses possam ser encarados como “parceiros apetecíveis” e viáveis para coproduções internacionais, até em termos de acesso a financiamento europeu.
Essa abertura foi possível, nos últimos anos, pela formação técnica de profissionais na animação, pelo aparecimento de mais produtoras, pela presença regular em mercados profissionais e pelo financiamento gradual à produção, atribuído pelo Instituto do Cinema e Audiovisual, com apoio da RTP.
Isso refletiu-se, por exemplo, na produção e estreia das longas-metragens “Os demónios do meu avô”, de Nuno Beato, e “Nayola”, de José Miguel Ribeiro, e numa maior visibilidade de curtas-metragens portuguesas, premiadas em circuito internacional, de vários autores, de Laura Gonçalves e Regina Pessoa a João Gonzalez.
Há mais longas-metragens de animação em produção em Portugal.
“Há vinte anos podiam argumentar que o que fazemos não é uma coisa que o mercado internacional queira, mas hoje sabemos que quer. […] Seria importante tentar que os governos olhassem para a animação e tomassem consciência da potencialidade industrial que esta atividade apresenta”, sublinhou o produtor.
Humberto Santana considera que, em termos técnicos e artísticos, existe “uma capacidade muito grande” de o cinema de animação se tornar uma fonte de rendimento até para o próprio país, tal como acontece em Espanha, em França ou na Bélgica, só para mencionar o contexto europeu.
É que “todos os anos saem dezenas de estudantes formados em animação com altas expectativas de colocação no mercado” e que depois não têm saída “sem a criação de uma plataforma industrial mínima”.
Humberto Santana entende que não basta apelar ao Ministério da Cultura, mas também se deve envolver o setor da Economia.
“Se não se fizer nada, vamos continuar a fazer boas ‘curtas’, eventualmente fazemos uma boa ‘longa’, mas continua sem haver uma resposta social, que permita que as empresas tenham sustentabilidade, que possam contratar pessoas, que os jovens possam ter algum futuro nisto e que se possam também fazer melhores filmes”, disse.
Ao fim de mais de três décadas na Animanostra, e duas à frente da Associação Portuguesa de Produtores de Animação, Humberto Santana revelou que está a diminuir o fluxo de produção e quer concentrar-se na realização e na animação, que foi sempre o que o moveu a entrar nesta atividade.
"Por todas as razões de incerteza, falta de sustentabilidade permanente, eu estou um pouco cansado dessa instabilidade. De modo que, estou a reduzir a atividade, e foi uma das razões que me fez entregar a produção da longa-metragem à Sardinha em Lata", disse.
A longa-metragem em questão é "Leonor e Benjamim", que obteve um milhão de euros nos apoios do ICA de 2023 e que conta a história de dois adolescentes apaixonados em 1506, ano em que morreram milhares de judeus em Lisboa.
O filme remete para o episódio trágico ocorrido em abril de 1506, em Lisboa, no qual milhares de cristão-novos (judeus forçados a converter-se ao Cristianismo) foram mortos de forma indiscriminada por multidões descontroladas.
A realização será de Humberto Santana com Pedro Brito, ambos em estreia numa longa-metragem, e o projeto está numa fase de montagem financeira e procura de coproduções internacionais.
"Agora que estou quase em fim de carreira decidi voltar às origens, a fazer os meus filmes e não dedicar toda a minha energia para a produção", disse.
“Mataram o pianista” é um documentário que relata a história do pianista brasileiro Tenório Júnior, considerado um dos nomes fundamentais da Bossa Nova, que desapareceu em Buenos Aires, em março de 1976, numa ocasião em que acompanhava Toquinho e Vinicius de Moraes num concerto.
O desaparecimento de Tenório Jr. aconteceu poucos dias antes do golpe de Estado que derrubou Isabel Péron, então Presidente, e impôs a ditadura militar, mas só uma década depois é que se soube que tinha sido raptado e detido pela Marinha argentina, tendo sido torturado e morto com um tiro na cabeça. O corpo do músico nunca apareceu.
No filme surgem depoimentos de arquivo de muitos músicos, como Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque, Toquinho, João Donato, Bebo Valdés e Bud Shank, além do escritor Ferreira Gullar, de jornalistas, amigos e familiares do pianista.
Humberto Santana explicou que os produtores do filme procuravam um parceiro em língua portuguesa, numa altura de produção em que, no Brasil, a administração era liderada por Jair Bolsonaro.
"Se o Bolsonaro não tivesse destruído toda a política de apoio ao cinema brasileiro e se não fosse claramente uma figura que simpatizava com o golpe de estado que estabeleceu a ditadura, o Brasil seria o parceiro natural" deste filme, disse Humberto Santana.
"Mataram o pianista" já teve estreia noutros países e tem feito um circuito internacional de festivais. Em Espanha, a história também já vertida para uma novela gráfica, assinada pelos dois autores.
Em Portugal, o filme tem antestreia na segunda-feira no Monstra – Festival de Animação de Lisboa, estando prevista a presença dos realizadores, e no dia 21 chega ao circuito comercial.
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