A 16ª edição do festival decorre entre 18 e 28 de outubro, tendo como espaços principais a Culturgest, os cinemas São Jorge e Ideal e a Cinemateca Portuguesa.

A diretora, Cíntia Gil, conversou com o SAPO Mag sobre o posicionamento político do Doclisboa e alguns destaques da programação que, entre outras novidades, procura trazer cinematografias completamente desconhecidas em Portugal, como a do colombiano Luís Ospina ou da abordagem temática do “Navegar o Eufrates”.

A conversa começa sobre política depois do festival ter revelado, há cerca de uma semana, ter sido alvo de pressão por parte das embaixadas da Turquia e da Ucrânia – a primeira para eliminar das sinopses de filmes expressões como “genocídio arménio” e “aniquilação do povo curdo”, a segunda para retirar da programação “Their Own Republic” , que “dava voz”, segundo eles, “a uma organização terrorista”.

O Doclisboa define-se como um festival não-isento politicamente…

É-nos impossível ter um festival de documentário que não tenha um posicionamento político, a não ser que fosse completamente anódino e não quisesse falar do mundo real. Caso contrário, tem sempre uma carga política – até porque, na nossa vida, se dissermos a palavra X ou Y, estamos a posicionarmos. Quem olhar para a nossa programação, para as nossas sinopses, para aquilo que temos dito, percebe que não somos isentos. Nós temos consciência da nossa importância e fazemos questão de que os espectadores possam encontrar filmes de qualidade e debates abertos e democráticos.

Há dias o festival entendeu tornar público que tinha sido alvo de pressão por parte de duas embaixadas…

Nós queremos que os produtores e realizadores se sintam seguros no DocLisboa, que possam discutir abertamente. Aqui não há agendas escondidas, jogos, negociatas, seja com que interesse político. Foi neste sentido que quisemos levar a público o problema com esse comunicado. Foi muito grave, porque as embaixadas são representantes de Estado, temos aqui uma questão de política internacional envolvida.

Até porque seria um país de fora a intervir num evento aqui dentro…

Exatamente, isso nem pensar. Não digo isso por uma questão de nacionalismo, claro, mas porque temos consciência do privilégio de viver num país com liberdade de expressão e onde a extrema-direita ainda não tem influência. Portanto, temos que continuar a lutar por isso.

Their Own Republic (2018)

Um dos momentos mais aliciantes deste DocLisboa é o programa da secção Foco – “Navegar o Eufrates – Viajar no Tempo do Mundo”. Como surgiu essa ideia?

A ideia surgiu quando pensamos em que tipo de imagens de locais como a Síria e o Iraque vamos poder ver a partir de agora – uma vez que somos bombardeados com imagens altamente violentas. O cinema, especialmente o documental, tem uma carga de arquivo muito grande e importante: quando um realizador filma algo, ele situa algo naquele momento. Os filmes que reunimos ajudam a mostrar as margens do rio antes de todas aquelas convulsões e, ao mesmo tempo, ajuda a explicá-las. Nós vemos o Eufrates como um dos berços da nossa civilização e, ao mesmo tempo, é um local de permanente conflito. Então, decidimos olhar para a história do cinema e procurar os lugares que existem nessa região, alguns que ainda subsistem mas estão totalmente transformados, outros que desapareceram. Também percebemos como cinema intuía alguns problemas futuros…

Têm alguns filmes bem antigos…

Temos um, por exemplo, de 1915, passado no contexto do genocídio arménio – o tal que a embaixada turca não quer que chamemos “genocídio”. Também existe um de 1926 (“The Honor”) e outros que abrangem várias décadas até ao presente. Também teremos uma performance de cinema expandido chamada “Ghouta Expanded 2.0”, com obras de artistas daquelas zonas.

A mostra inclui o “Yol - Licença Precária” [foto]…

Vamos mostrar a versão restaurada. Depois de ganhar a Palma de Ouro, em 1982, o filme foi banido da Turquia durante 30 anos e depois circulou uma cópia censurada. Esse foi o outro caso que incomodou a embaixada aqui em Portugal, pois falamos em "aniquilação do povo curdo". Uma pessoa que diga isso na Turquia pode ser presa – a proibição está prevista na lei. É um filme maravilhoso.

A retrospetiva é dedicada ao cineasta colombiano Luís Ospina, que é mal conhecido por cá…

Sim, essa é uma das razões de porquê o escolhemos. Os festivais de cinema na Europa têm uma tendência para centrarem-se em cinematografias europeias ou norte-americanas – e de outros lugares privilegiam apenas nomes muito famosos. Nós queríamos muito trazer outras paisagens e culturas que não fossem europeias – daí os nossos programas históricos serem de regiões como o Médio Oriente ou a América Latina. Este último às vezes parece algo ‘exótico’, mas tem uma cinematografia muito importante. A Colômbia, por exemplo, é um país muito pouco conhecido. Quisemos trazer o Luís Ospina e a sua obra e é maravilhoso quando os cineastas ainda estão vivos e querem partilhar com o público. O cinema dele, todo feito em torno da sua cidade, Cali, é muito rico, há até falsos documentários ou “fantástico”, e tem uma energia rebelde enorme que dá imensa esperança ao cinema.

As imagens de Cali que chegam são sempre do narcotráfico…

Exatamente! E nós quisemos mostrar a cidade não associada a isto, buscar outras imagens. Por exemplo, existe lá algo chamado Caliwood, uma indústria onde diversos artistas sonhavam em fazer filmes numa espécie de versão pobre de Hollywood. É o mesmo caso da Síria, que chega através de imagens da guerra e era um país de sonho, com uma cultura de uma riqueza enorme.

O festival abre com um filme sobre o nazismo [“The Waldheim Waltz”] num momento em que a extrema-direita parece que regressou de vez à ordem do dia…

O filme funciona como um espelho chocante do presente – basta lembrar que a Áustria, neste momento, tem uma extrema-direita bastante atuante. O filme conta a história de Kurt Waldheim, que escondeu alguns anos do seu passado durante a Segunda Guerra Mundial e a sua atuação como nazi e, mais tarde, foi secretário das Nações Unidas e presidente da Áustria. Foi durante a sua campanha para a eleição, em 1986, que esse passado veio à tona. A realizadora, Ruth Beckerman, que na altura foi uma das militantes contra a sua candidatura, foi buscar as imagens que ela tinha feito neste período para fazer a pergunta: como é que este homem chegou aqui? O filme mostra como há tantos fascistas a viver entre nós, a negarem os seus passados e a voltarem ao poder.

O que podemos esperar do filme de encerramento, “Infinite Football”?

É um dos melhores filmes que vimos em Berlim. O Corneliu Porumboiu é um dos realizadores mais interessantes da Europa hoje em dia. Neste filme, ele fala sobre um homem que inventa novas regras para o futebol e, através da ironia e do absurdo, encontra um retrato político e social da Roménia. Ele já tinha feito um filme muito bom sobre futebol há alguns anos, “The Second Game”. O seu pai era árbitro de futebol, daí ele também se interessar pelo tema. “Infinite Football” tem uma carga irónica deliciosa, é muito divertido.