"Lucky" é o penúltimo filme de Harry Dean Stanton, o eterno ator de "Paris, Texas", falecido em setembro deste ano, aos 91 anos.
A seguir ainda participou como secundário em “Frank and Ava”, obra ainda sem lançamento comercial, mas aqui em "Lucky" ele é o protagonista: todo o filme gira em torno dele e, em mais do que um instante, o realizador John Carroll Lynch reconheceu o projeto como sendo uma homenagem.
O personagem-título vive sozinho numa pequena cidade dos Estados Unidos. Tem uma rotina de exercícios, fala com toda a gente – do café, da mercearia, do bar. Daí para um retrato algo melancólico da velhice é um passo – mais ainda quando o protagonista, num dado momento, se dá conta da sua situação e é obrigado a entrar num processo de aceitação.
O SAPO Mag conversou com John Carroll Lynch, que esteve em Lisboa para a antestreia nacional. Mais conhecido por uma longa carreira como ator, que inclui a série “American Horror Story” e filmes como "Zodiac" e, mais recentemente, "O Fundador", como secundário de Michael Keaton, esta sua estreia como realizador agrada pela simplicidade e por um belo simbolismo estabelecido a meio do filme. Este vai resultar numa cena emocionante perto do fim – sobre a qual o próprio fala com emoção.
E quem também apareceu para a “homenagem” foi David Lynch – interpretando um idoso que quer deixar os seus bens para uma tartaruga… Ou melhor, para um cágado.
Um ponto de viragem na história é simbolizada por uma afirmação do protagonista: existe uma diferença entre estar sozinho ou viver na solidão.
Acho que isso permite ao filme trabalhar a questão de quando uma pessoa subitamente se sente solitária. Ele estava sozinho e isso nunca foi um problema para ele. A solidão é que é nova, o sentimento de ter de enfrentar tudo apenas por ele mesmo. É diferente. Quando ele estava na Marinha, no navio, ele não estava sozinho, ele estava enfrentando alguma coisa, mas estava conectado às outras pessoas.
Nas circunstâncias após a sua queda, ele já não sente estas conexões. Foi uma das questões que achei fascinante no argumento. Na nossa essência enquanto seres humanos estamos fundamentalmente sozinhos, mas não tem de ser assim.
Também adotou uma visão não-religiosa na sua abordagem de questões como a vida e a morte. Há a cena em que filma uma igreja, Harry Dean Stanton surge na imagem, pensamos que ele vai entrar, mas ele segue em frente… E, depois, claro, há todo aquele discurso sobre o vazio…
Em primeiro lugar, essa foi uma adaptação do guião em função das crenças do próprio Harry Dean. Era o que ele pensava, ‘ninguém está no comando, nós não somos nada’. Em termos dramáticos, achei poderoso. Quando era jovem e participava num programa de apoio conheci um padre que tinha uma fé enorme. Ele estava a morrer, sabia isso, e tinha 100% de fé que ia para o céu. Ele ‘sabia’ que ia ver o seu salvador. Lucky está a enfrentar esse processo sem a mesma crença – não há ressurreição, não há reencarnação. Há vida e morte, é tudo.
Dramaticamente, é algo poderoso – isso independentemente das minhas convicções pessoais. Neste sentido, não compactuo com o absoluto ateísmo de Harry Dean, tal como não tenho a fé do padre que citei. Fico numa zona cinzenta entre as duas coisas.
O que sei é que é algo que vou ter que enfrentar, mais cedo ou mais tarde. Era o que acontecia ao personagem – é algo que acontece hoje ao meu pai, por exemplo, que tem 86 anos. Temos que enfrentar sempre isso, podemos esquecer-nos, a minha mente consegue esquecer isso, mas claro que chega a altura em que temos de encarar a nossa finitude.
Como acha que o próprio Harry Dean Stanton lidava com isso? Acha que ele tinha medo?
Na altura em que estávamos a trabalhar juntos ele já tinha um diagnóstico de cancro. Mas Harry Dean, apesar disto e de já ter 90 anos, estava numa forma estupenda. Claro que, no final, ele estava exausto, foi imenso trabalho. Não sei o que ele pensou quando ficou doente.
Por razões que têm a ver com o filme, mas também com o que se passa fora dele, há um momento tocante quando Harry Dean Stanton rompe a quarta parede.
É um belo momento. Veio já no instante final da pré-produção, quando um dos produtores e coargumentista, Drago Sumonja, deu a ideia – inspirada numa cena de “Smokey and the Bandit” [“Os Bons e os Maus”, de 1977], quando Burt Reynolds olha para a câmara, ‘para nós’ e depois vai embora.
Na altura gostei muito da ideia – pensei ‘temos algo aqui’. Mais tarde, quando a vi no ‘set’, fiquei petrificado. O filme teve a sua estreia no South by Southwest e o público ficou eletrizado. Penso que criamos um momento muito emocionante. Harry faleceu 14 meses depois de ter gravado aquilo. Isso faz-me pensar na capacidade indefinida de uma cena se estender no tempo. Ainda hoje sinto-o muito presente quando penso naquele momento.
Como o conheceu e como é que o projeto tomou forma?
Conheci Harry Dean socialmente anos antes do projeto. O primeiro convite que tive foi como ator – e disse que ‘sim, ponham-me na lista’. O projeto só arrancou mais tarde e aí convidaram-me para realizador pois sabiam que queria fazer isso e achavam que era uma peça de ator. Depois de três meses de trabalho no argumento com Drago e Logan Sparks, ele ficou cada vez melhor. Quando as filmagens começaram, sentia-me confiante, todo o filme estava no papel.
Pretende continuar a fazer filmes como realizador?
Certamente. Sou principalmente um ator, gosto demasiado disto para deixar de o ser. Mas gostaria de fazer um novo filme como realizador – até para ver o que aprendi com este. Não acredito que uma única experiência seja suficiente para aprendermos muito. Melhorei como ator repetindo diversas vezes o processo e é o que quero fazer aqui.
Mas já tem algo específico?
Sim, eu e um escritor estamos a trabalhar num projeto, mas também estou aberto a outras possibilidades. Não sei se este será, necessariamente, o primeiro. Tento empregar uma ideia inspirada em Robert Altman, li sobre os seus métodos de produção. É algo como ‘cozinhar alguma coisa enquanto espera alguém aparecer ao telefone com algo já cozido”. Mas há uma ideia principal na qual estamos a trabalhar. Acho que vai ser muito bom, gosto bastante dela.
É sua primeira vez em Lisboa?
Sim, é a minha primeira vez em Portugal e infelizmente não terei tempo para conhecer Lisboa. Também já percebi que tampouco é uma cidade para dois dias. É o tipo de lugar que discutirei com a minha esposa a possibilidade de passarmos aqui um mês.
Não gosto de viajar em ‘sightseeing’, o que me interessa é conhecer os cafés, os restaurantes, a vizinhança por períodos de, pelo menos, duas ou três semanas. As cidades não são compostas apenas de lindos edifícios com aqueles que já pude observar em Lisboa – com a sua belíssima arquitetura e toda a sua História. Não é uma cidade para dois dias e certamente não será a última vez que venho cá.
"Lucky" está em exibição nas salas portuguesas.
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