“Apesar do título ‘Guerra’, isto não é um filme sobre a guerra”, explica José Oliveira ao SAPO Mag sobre a docufição que corealizou com Marta Ramos e será exibida no Doclisboa este sábado (24) às 21h30.
O cineasta acrescenta que a "Guerra" se assemelha a “‘O Caçador’ [1978], em que todos ficaram surpreendidos quando Michael Cimino [realizador] disse que não era sobre a guerra do Vietname, mas sobre um homem atormentado por esses fantasmas. Por essas memórias.”
E é através disso mesmo, as memórias de uma guerra distante, mas presente, que se enraízam no corpo do José Lopes, que veste os trajes de Manuel Santos, um veterano da Guerra Colonial que tenta apaziguar as recordações bélicas.
Como um álbum fotográfico, “Guerra” proclama o corpo do ator (falecido em 2019, aos 61 anos) como um velcro memorialista, deambulando por Lisboa e pelas suas margens em busca do elixir que possa afastar os seus demónios, muitos deles de natureza salazarenta.
Nesta sua “peregrinação” física e espiritual, Lopes reencontrar-se-á com velhos combatentes, de maneirismos nunca esquecidos e de relatos à prova do tempo.
“Eles assumiram parte do filme”, revela Marta Ramos, que não poupa elogios ao contributo destes não-atores reconvertidos, verdadeiros "infantes" que partilharam as suas experiências, receios e o característico espírito-de-corpo, a camaradagem desde universo.
Mas é José Lopes que a dupla de realizadores aponta como o contramestre desta operação.
“Ele não foi à guerra, mas recolheu histórias e fez o seu estudo, assumindo esse papel de porta-voz”, refere José Oliveira.
Marta Ramos completa que “mesmo não tendo vivido a Guerra Colonial, tornou o filme a sua história. Nós vemos a sua figura ali representada. Por exemplo, no momento em que ele se reúne com a psicóloga, podemos apercebemo-nos pelos seus olhos que é o ‘verdadeiro’ José Lopes que está ali. Ele está genuíno.”
Presente está que o "ator" viveu os seus últimos dias como sem abrigo, levando a que determinadas sequências de “Guerra” se possam confundir com a sua vida real.
“Terminar o filme foi uma luta com o luto”, sublinha a realizadora.
Acarinhado pela dupla, José Lopes foi um figura central na sua filmografia, tendo protagonizado a curta “Longe”, selecionado no Festival de Locarno em 2016, que convidava o espectador a uma viagem pela sua rendição ao passado, e participado numa das sequências centrais de “Os Conselhos da Noite”, realizado por José Oliveira e que estreou nos cinemas a 17 de setembro.
Mas para o realizador, o ator foi um espécie de "Ventura" na sua demanda cinematográfica, traduzindo-se nos signos do cinema de Pedro Costa, a quem não poderiam faltar os agradecimentos nos créditos.
Questionado sobre o paralelismo de “Guerra” com “Cavalo Dinheiro” [de Pedro Costa], nem que seja por ambos serem produzidos pela OPTEC, o realizador assume que “foi filmado com as câmaras de ‘Cavalo Dinheiro’, mas como sempre ouvi dizer, as chuteiras não jogam sozinhas […] as semelhanças não são voluntárias, foram fruto do nosso fascínio pelo filme, que vimos diversas vezes.”
Segundo Marta Ramos, “Guerra” teve como base o livro de Paulo Faria "Estranha Guerra de Uso Comum”, o relato de alguém que se relaciona com um ex-combatente, lidando indiretamente com os seus próprios tormentos. De certa forma, todos estes indivíduos retirados de um coletivo militarizado são, e foram, "os meninos da sua mãe", extração a cru do homónimo poema de Fernando Pessoa, que é lido em breves minutos após os créditos iniciais.
Mas José Oliveira acrescenta que “Guerra” gerou material suficiente para um novo trabalho, prometendo que, no futuro próximo, veremos novamente José Lopes no grande ecrã. A sua memória será a última a desvanecer.
O Movimento das Coisas, 35 anos seguintes
Durante a conversa com o SAPO Mag, José Oliveira e Marta Ramos também falaram de um dos mais misteriosos e, segundo a dupla, "belos" filmes portugueses, “O Movimento das Coisas”, a única obra realizada pela atriz Manuela Serra.
A cópia restaurada com supervisão da realizadora tem estreia comercial em Portugal agendada para o próximo ano, 35 anos passados desde a sua revelação no Festival de Mannheim, na Alemanha, onde acabaria por ser premiado.
Na descrição de José Oliveira, trata-se de um “documento etnográfico e poético ao nível de Kenji Mizoguchi ou de John Ford” do quotidiano na aldeia de Lanheses, no concelho de Viana do Castelo.
Os realizadores revelam que viram o filme na segunda edição dos Encontros Cinematográficos, que decorreu na Guarda, o que os levou a fazer a curta “35 anos depois, O movimento das coisas” (2015), com colaboração de Mário Fernandes [diretor do Encontros Cinematográficos], onde convidaram a realizadora a regressar à aldeia que “alimentou” a sua obra.
Marta Ramos revelou que ainda tentaram convencer Manuela Serra a regressar ao cinema, mas sem êxito, visto que desistiu de tudo isso em 1990.
“Não senti vontade de voltar e até perdi o gosto pelo cinema”, disse a atriz numa entrevista conduzida pelo realizador Manuel Mozos para o Jornal dos Encontros Cinematográficos em 2011.
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