Sem dúvida que o grande momento de glamour no Festival de Cannes na quarta-feira foi a chegada de Tom Cruise para promover a exibição do seu "Top Gun: Maverick" e ser homenageado.

Mas antes disso, o cineasta russo dissidente Kirill Serebrennikov declarou "não à guerra" na apresentação do seu filme "Tchaikovsky's Wife", dando um tom político ao festival.

Tom Cruise recebe Palma de Ouro honorária surpresa em Cannes
Tom Cruise recebe Palma de Ouro honorária surpresa em Cannes
Ver artigo

A sua presença era muito esperada, já que em outras edições, nas quais disputou com "Petrov's Flu" (2021) e "Leto" (2018), não pôde comparecer porque cumpria pena por desvio de fundos, num caso denunciado pelos seus defensores como uma manobra política.

Filho de uma ucraniana, Serebrennikov criticou a ação do seu governo. A arte "é estritamente contra a guerra", acrescentou o cineasta, conhecido por defender a comunidade LGBTQ+.

O seu filme, sobre a tumultuada relação entre o famoso compositor e a sua esposa Antonina Miliukova, é uma das 21 longas-metragens que disputam este ano a Palma de Ouro.

Com "Tchaikovsky's Wife", o "enfant terrible" do cinema russo atirou luz sobre Antonina Miliukova, a mulher com quem o famoso compositor se casou para esconder a sua homossexualidade.

Até agora, a versão quase oficial da vida de Piotr Ilich Tchaikovsky é baseada na biografia soviética de Igor Talankin (1969), uma referência na Rússia, onde a homossexualidade do compositor é colocada nas entrelinhas e também no filme "Tchaikovsky, Delírio de Amor", de Ken Russell (1971).

O filme de Serebrennikov narra em 143 minutos a vida e o sofrimento de Miliukova, na pele da atriz Alyona Mikhailova.

A produção tem um tom muito mais clássico e menos carregado que "Petrov's Fever", mas sem chegar ao entusiasmo de "Leto", sobre o rock soviético.

"É um filme sobre alguns episódios da sua vida e sobre uma mulher obcecada por ele", disse à AFP Kirill Serebrennikov, em abril em Berlim, onde mora atualmente.

"Mostra a sua versão dos factos e é interessante, já que Antonina Miliukova é uma personagem totalmente esquecida", afirmou o realizador, para quem este filme foi o "início de uma grande viagem" no universo do compositor do "Lago dos Cisnes".

"Desconhecido"

Há alguns anos, quando Serebrennikov procurava financiamento público para este filme, o então ministro russo da Cultura Vladimir Medinski (atualmente chefe da delegação russa nas negociações com a Ucrânia), "queria que seguíssemos a versão soviética" da vida do compositor, explicou.

Na Rússia, "Tchaikovsky é um monumento que não sofreu, que não teve vida privada", afirmou. Segundo ele, a sua vida íntima continua a ser "desconhecida para os russos, como as de Dostoiévski e Tolstoi".

Serebrennikov, que se baseou nas obras do especialista russo-americano Alexander Poznanski, afirma que a sua vontade era mostrar como esta tumultuosa relação foi também fonte de "inspiração para as suas extraordinárias criações".

Ainda que a homossexualidade do compositor seja conhecida há tempos, fragmentos de cartas de Tchaikovsky publicados sem censura pela primeira vez em 2018 revelam que ele sofreu por amor e tinha atração por homens.

"Encontrei um homem de beleza avassaladora [...] Depois de uma caminhada, ofereci-lhe dinheiro, que ele recusou", escreveu em 1880 ao irmão Modest, também homossexual e libretista da sua ópera "Dama de Espadas".

No mesmo ano, descreve o seu assistente, Alexei Sofronov, o seu amante mais fiel, como "uma criatura angelical", de quem gostaria de ter sido "escravo, brinquedo, propriedade".

Estas passagens foram censuradas após a sua morte em 1893, primeiramente pelos seus irmãos e depois pelo regime soviético.

"Inclusive agora, muita gente não acredita e considera que é uma tentativa de arruinar a reputação do melhor compositor russo", afirma à AFP Marina Kostalevski, professora de russo do Bard College em Nova Iorque, que copublicou uma compilação de cartas.

"Ser normal"

Segundo ela, Tchaikovsky casou-se com Antonina Miliukova, ex-aluna do Conservatório de Moscovo, que lhe escreveu uma carta de admiração, pois "queria ser normal aos olhos da sociedade", mas também para proteger a sua reputação dos rumores.

"Quero casar-me ou ter um relacionamento público com uma mulher para calar a boca de toda essa escória, cuja opinião não importa para mim, mas que faz sofrer as pessoas próximas de mim", escreveu o compositor a Modest em 1876.

Mas o músico "rapidamente percebeu o seu erro [...]" e depois "descreveu ao irmão Anatoli a tortura que era estar com ela e como ele tinha medo de que ela tentasse se aproximar fisicamente dele", explica Marina Kostalevski. Ele tentou ainda cometer suicídio num rio congelado.

E Antonina Milyukova? Por muito tempo, os biógrafos atribuíram a ela o sofrimento de Tchaikovsky, chamando-a de louca - ele mesmo disse que ela era uma "víbora" -, mas atualmente os investigadores são menos categóricos.

Em "Antonina Tchaikovskaya: História de uma vida esquecida", de Valery Sokolov, a autora "tenta provar que ela não era esse monstro descrito por alguns biógrafos", diz a professora Kostalevski.

A vida de Antonina, que terminou num hospital psiquiátrico, "foi totalmente destruída".

Embora tenham vivido juntos por muito pouco tempo - nunca se divorciaram - é nessa época que o compositor criou uma de suas obras-primas, a ópera "Eugene Onegin", baseada no famoso romance de Pushkin e influenciada por esse relacionamento impossível.