Um pai e um filho vivem suspensos nas alturas, numa casa presa no alto de um precipício, e trabalham no comércio de gelo, que vendem numa aldeia na planície lá muito em baixo. Como lá chegam? Lançam-se pelos ares, de para-quedas, de forma tão temerária como visualmente espetacular. A partir deste ponto de partida simples mas graficamente muito arrojado, fazendo pleno uso da vertigem e das perspetivas mais extremas, “Ice Merchants”, completamente sem diálogos, está a conseguir conquistar públicos de todo o mundo, numa metáfora poderosa e universal sobre a família, a perda e a reconciliação.

Veja aqui a lista completa de vencedores dos Óscares 2023
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Com apenas 14 minutos, “Ice Merchants” tornou-se uma das raras curtas-metragens de animação portuguesa a ter estreia mundial no Festival de Cannes (seguindo-se a “Os Salteadores”, em 1994, na Semana da Crítica, “Estória do Gato e da Lua”, em 1995, na Selecção Oficial em Competição, e “Água Mole”, já em 2017, na Quinzena dos Realizadores) e o primeiro de todos a ser aí premiado, com o troféu Leitz Cine Discovery, destinado à melhor curta-metragem a concurso. Foi o início de um período recheado de galardões em todo o mundo, que culminou com a primeira nomeação de um filme português ao Óscar, no caso de Melhor Curta-Metragem de Animação.

O filme é o primeiro feito em contexto profissional de João Gonzalez, cineasta de 27 anos com formação clássica em piano e estudos de animação na londrina Royal College of Art, onde fez os dois filmes anteriores, “The Voyage” e “Nestor”, ambos já com sólida circulação em festivais. A produção pertenceu à cooperativa Cola Animation, com o produtor a ser o multifacetado Bruno Caetano, 43 anos, também editor de BD e ele próprio realizador de filmes em animação “stop-motion” como o muito premiado “O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto” e de encantadores telediscos como “Cinegirasol” e “Fundo de Garrafa” para os Azeitonas.

A 21 de janeiro, às 13h37 (hora de Lisboa), foram ambos nomeados ao Óscar na categoria de Melhor Curta-Metragem de Animação por “Ice Merchants”, e desde então têm vivido num frenesim de entrevistas, parabenizações, solicitações e boas notícias, uma das quais a estreia do filme em distribuição alargada em sala de cinema. Numa pequena pausa, conversaram com o SAPO não só sobre todas as etapas de criação do filme que conseguiu ultrapassar todas as barreiras e chegar ao palco principal de Hollywood, feito que desde sempre escapara ao cinema português, como também sobre todo o processo necessário para conseguir atingir essa primeira vitória e como tem sido o dia a dia desde então.

João Gonzalez e Bruno Caetano
João Gonzalez e Bruno Caetano créditos: Patrick Hadjadj
"Nós fazemos filmes para chegarem às pessoas, e se os Óscares nos ajudarem com isso, ficamos muito felizes, obviamente"

Estamos a viver um momento especial no cinema de animação português, incluindo vitórias em festivais como Cannes ou Clermont-Ferrand e, pela primeira vez, a estreia comercial de longas-metragens nacionais (“O Natal do Bruno Aleixo” em dezembro último, “Nayola” e “Os Demónios do Meu Avó” nos próximos meses). A culminar tudo, temos pela primeira vez em 95 anos um filme português nomeado aos Óscares. E é um filme de animação…

João Gonzalez: Sim, e para além disso também foi a primeira vez que três curtas portuguesas chegaram à “shortlist” dos Óscares no mesmo ano, o que também é um facto notável [“O Homem do Lixo”, de Laura Gonçalves, foi a outra curta de animação na corrida]. E com a curta do Filipe Melo, “O Lobo Solitário”, também foi a primeira vez que uma curta de imagem real chegou à “shortlist”, portanto foi um ano muito bom.

Bruno Caetano: No passado, Portugal já tinha tido dois filmes na “shortlist”, ambos de animação, por parte da Regina Pessoa ["História Trágica com Final Feliz" em 2006 e "Tio Tomás - A Contabilidade dos Dias" em 2020].

João Gonzalez: Mas sim, é obviamente o culminar de um ano muito intenso para a animação portuguesa. No nosso caso, acima de tudo, vemos os Óscares como uma possibilidade de expor o nosso filme. Porque os Óscares têm aquele fator mediático, toda a gente sabe o que são. Nós fazemos filmes para chegarem às pessoas, e se os Óscares nos ajudarem com isso, ficamos muito felizes, obviamente.

Voltando ao princípio: João, este é o teu terceiro filme, mas ele partilha com os dois primeiros, o “The Voyager” e o “Nestor”, várias semelhanças: personagens que vivem isoladas, com algumas rotinas diárias, em filmes sem diálogos, com uma atenção muito grande à música. Tem sido algo consciente?

João Gonzalez: É algo consciente e inconsciente ao mesmo tempo. Acho que está tudo ligado às minhas bases artísticas. Vou colocar sempre um grande empenho na parte musical dos meus projetos, porque ma úsica foi o primeiro tipo de arte com que tive maior contacto. Depois, há sempre uma vertente muito forte em termos de cenários contra personagens. As minhas curtas, de certa forma, são sempre uma luta entre as personagens e o cenário onde elas vivem. Tal como também está sempre presente esse fator de solidão e de viverem isoladas.

É engraçado porque nas minhas duas primeiras curtas havia outra razão muito simples para isso acontecer, que é de certa forma uma razão logística: fiz esses dois filmes completamente sozinho, e em animação quantas mais personagens nós temos mais duplica ou triplica o trabalho. Portanto, para mim era importante arranjar algo que eu pudesse fazer sozinho e com o qual conseguisse passar a mensagem que queria. Neste filme, já há mais personagens, mas o sítio isolado permanece e eu sinto que, de certa forma, vai estar sempre nos meus filmes.

Os meus filmes começam normalmente sempre com uma imagem que vem do meu subconsciente. E essas imagens normalmente são momentos bastante inóspitos e surreais e para mim são uma personagem tão importante como as personagens humanas do filme.

Veja o trailer de "Ice Merchants":

Tens dito que o processo de criação de um filme começa para ti com imagens, música e sensações e só no fim é que chegas ao argumento. Não te arriscas a chegar ao fim do trajeto e depois, até pegando no nome da produtora, não haver cola que chegue para juntar peças todas?

João Gonzalez: (risos) Sim, gosto de trabalhar desta forma. Trabalho muito na pré-produção, estabeleço a realidade do filme, as regras do que se vai passar lá etc. E quanto mais descubro acerca dessa realidade e mais consigo ficar imerso nela, mais começo a criar ideias mais concisas para a narrativa. Desde o início que sei o tema base e a estrutura da história que quero, mas as nuances e essas coisinhas pequenas só vou descobrindo durante o processo. Mas sim, é capaz de ser uma forma um bocado arriscada. Tenho amigos que começam os filmes pelas personagens e eu faço o sentido inverso. Começo por uma realidade e deixo depois que as personagens apareçam naturalmente.

Bruno Caetano: Percebo aquilo que tu dizes, que poderia ser arriscado. Mas acho que aqui, e falo também como realizador, vai um bocado por começar a trabalhar em algo criativo de um ponto em que te sentes à vontade e confortável. O João tem ferramentas que eu não tenho. Por exemplo, o facto do João conseguir, logo desde o início, explicar exatamente o que é que vai acontecer sonoramente e musicalmente em certos e determinados momentos, para mim, enquanto produtor, é um benefício, porque consigo perceber à partida exatamente que emoção é que ele quer tirar do público. Praticamente ninguém consegue fazer isso. Portanto, é uma questão de nos adaptarmos à maneira como o João trabalha. E é uma adaptação muito simples e muito rápida de se fazer.

João Gonzalez: É também é importante vincar que nós só começamos a produção quando já tenho a estrutura estabelecida do filme e o “storyboard”. Começo a pré-produção sozinho, mas só envolvo o resto da equipa quando tenho um “storyboard” e uma narrativa que posso apresentar, para depois perceber se as pessoas estão interessadas em trabalhar no projeto, obviamente.

ICE MERCHANTS, de João Gonzalez: 1 nomeação para Melhor Curta-Metragem de Animação

Nesse sentido, e neste filme, também és um “one man show”, porque assinas a realização, a música, o argumento, a montagem, a direção de arte, parte da própria animação…

João Gonzalez: Acho que é benéfico como realizador, mesmo que não trabalhe ativamente em todas as funções do filme, estar por dentro de cada tópico porque consigo saber melhor o que é que posso esperar das pessoas com quem colaboro. Na parte musical, compus a banda sonora, mas trabalhei desde o início com o Ricardo Real, que é um engenheiro de som e é produtor musical, que foi uma peça fulcral para conseguirmos equilibrar exatamente a sonoridade da banda sonora desde o início. E ele tem ferramentas técnicas que eu não tenho. Mas o facto de ter esse 'background' musical ajuda-me a saber o que é que posso esperar dele, tanto em termos de sound design, como em termos de orquestração. Não sou “one man show”, estava ativo em várias partes do filme mas isso foi tudo possível porque toda a gente que colaborou conseguiu perceber a mensagem e o que é que nós estávamos a pedir desde o início. E foi um trabalho muito coeso e estou muito orgulhoso de toda a gente.

Bruno Caetano: A animação tem uma particularidade: realmente é possível um autor de animação, que seja transversal a nível de capacidades, conseguir fazer um filme sozinho. Ao contrário da imagem real, que muitas vezes precisa de atores e coisas assim. Em animação não precisas disso, só que há uma coisa: a obra nunca vai ser a mesma. Porque um filme de animação é a soma das experiências que todos oferecem à produção. E isso torna o processo um pouco menos longo e um pouco mais simpático, porque se estiveres anos fechado em casa tornas-te um eremita anti-social. E nós, animadores, por natureza, já somos bichos bastante particulares. Agora imagina numa situação dessas de clausura.

João Gonzalez: Como nos meus filmes... (risos)

Bruno Caetano: Nós na Cola somos bastante transversais e partilhamos muitas responsabilidades uns com os outros. Tanto no caso do João como, por exemplo, no caso da Ala Nunu que trabalhou connosco neste filme como animadora. Nós como somos uma cooperativa e não uma empresa com uma estrutura piramidal, somos bastante lineares, acabamos sempre por estar cá para nos apoiar naquilo que for preciso. O João, por exemplo, tratou muito do “pipeline” da produção. O melhor exemplo disso foi quando, após um ano e tal em que éramos muito poucos a trabalhar no filme - era o João, eu e a Ala Nunu - entrou uma equipa bastante vasta para tratar da pintura, que foi feita de forma exemplar em tempo recorde. E o João tratou da comunicação direta com essas pessoas, não só a título de realizador mas também a título de produção, e realmente criou ali um “pipeline” em que todos conseguissem trabalhar bem.

Uma estreia em glória no Festival de Cannes

Ice Merchants

Como é que têm sentido as reações das pessoas ao filme? Já estive em sessões onde as pessoas se comoveram de forma muito notória.

João Gonzalez: É a melhor sensação que podemos sentir, acho eu. Tive muita sorte. No ano passado, tive a oportunidade de viajar com o filme pela primeira vez fora da Europa. Aliás, nunca tinha viajado para fora da Europa, e tanto no México como na Austrália, em vários países, é engraçado vermos que a mensagem passou mesmo em comunidades e lugares completamente diferentes do mundo. E o final das sessões era sempre bastante gratificante, tínhamos constantemente gente a vir ter comigo e a falar do filme. Isso é o máximo que posso pedir. Acho que em cinema devemos ser honestos connosco, manter a nossa visão inicial do filme até ao fim. Mas também acho que há uma forma de conciliar isso com saber comunicar com o público. E acho que quando as duas coisas se conseguem cruzar, é um filme que resulta.

Bruno Caetano: A estreia foi na Semana da Crítica em Cannes. Foi a primeira vez que o filme foi exibido em público, nós estávamos lado a lado e duas filas atrás havia uma pessoa que chorava naquela parte mais emocionante. Quando estivemos em Toronto, no TIFF, no final tive a oportunidade de levar a minha família a ver o filme e o meu tio estava super-emocionado, mas super-emocionado. Tinha sentido aquilo de uma forma muito imensa… Há muita gente que se emociona a ver o filme, talvez por razões distintas. O filme é tão humano, poderá afetar cada um de uma forma completamente diferente ou por razões completamente diferentes. Mas a verdade é que as pessoas sentem aquilo que o João tentou transmitir com o filme. E aí realmente há uma sensação de missão cumprida. É bom conseguir transmitir estas coisas ao público.

Toda a gente quer ter um filme em Cannes, mas é muito difícil, principalmente no caso da animação. Como é que foi o vosso processo? Calculo que não tenham tido uma particularidade muito singular além de enviar… E rezar…

João Gonzalez: Sim, lá está, a nossa lógica aí foi “porque não?...”

Bruno Caetano: Sim, eu disse-lhe “João, tens a consciência que vai ser muito difícil conseguirmos ser selecionados para Cannes. Se formos ver o historial do festival, não é uma coisa muito comum um filme de animação, muito menos um filme de animação português, ser selecionado”. E a resposta dele foi brutal. Foi “Olha, porque é que não tentamos? Se não ficarmos selecionados, não ficamos”...

E quando são selecionados, indicam-vos logo que entram naquela secção?

João Gonzalez: Sim, sim. Portanto, é muito complicado, estatisticamente é muito difícil, porque cada ano tem três secções, tens a Quinzena dos Realizadores, a secção principal da Palma de Ouro e a Semana da Crítica. E cada uma delas só seleciona dez curtas por ano. E normalmente não é muito aberta a animação. Portanto, em termos de probabilidades, nós realmente não estávamos com muitas expetativas. Mas também estávamos naquela de “porque não”? E a Agência da Curta-Metragem [que agencia o filme] também foi importante...

Bruno Caetano: Sim, a Agência foi um parceiro que esteve connosco desde o início. Aliás, antes do filme ser lançado, a Agência já estava a colocar o João em frente de programadores de festivais, em alguns festivais, e isso também ajudou a criar… Nós tínhamos um trecho de cerca de dois minutos do filme já completamente fechado, e isso ajudou os programadores de festivais a já terem uma ideia do que é que estava a caminho. E acredito que isso também em alguns festivais foi um elemento diferenciador.

A partir daí começaram a ir galgando festivais e galgando seleções...

João Gonzalez: Sim, foi um começo muito bom, muito bom.

Bruno Caetano: E num espaço de poucos dias já tínhamos a confirmação de alguns dos festivais que eram escolhas do João, para a estreia em certos e determinados países. Então, de repente, ficámos assim um bocado sem perceber o que se estava a passar. E a pensar “isto está a ser incrível!” E isto mesmo antes sequer de termos ido para Cannes. Portanto, foi uma coisa impressionante. Mas quando chegamos lá, a nível de prémios e coisas assim, claro que estamos nas mãos do gosto de quem está a avaliar? Não fazíamos a mínima ideia de como é que ia correr.

Vocês foram conquistando prémios, alguns dos quais qualificaram o filme para os Óscares. Na verdade, o filme estará feito há cerca de um ano, portanto vocês estão há muito tempo a viver neste período de pós concretização do “Ice Merchants”.

João Gonzalez: Não, o filme nem fez um ano, na realidade. Nós acabámos o filme mesmo à rasquinha antes do festival. A última semana antes do festival foi muito stressante…

Bruno Caetano: Com eles a perguntarem: “Mas têm a certeza que o filme vai estar pronto?”. E nós “Temos, Temos, temos…”

Vocês não apresentaram o filme 100% fechado?

João Gonzalez: Nós apresentamos em “work in progress”, mas o filme finalizado foi muito perto do festival.

Bruno Caetano: Acho que foi na véspera da data deles mandarem os DCP. Ainda perguntámos se havia possibilidade de mandar um segundo DCP e eles disseram “não, não, nem pensar”. Porque o João queria corrigir ali uma coisa qualquer. Já não lembro o que era.

João Gonzalez: Na última cena, acho que tinha a ver com as cortes, com um balanço qualquer com as cores.

Como chegar à nomeação ao Óscar?

Ice Merchants João Gonzalez
A equipa de "Ice Merchants" a receber em direto a notícia da nomeação ao Óscar

A qualificação aqui para os Óscares é sempre curiosa. No caso dos dois filmes da Regina Pessoa, havia um co-produtor canadiano, o National Film Board of Canada, que estando no continente americano teria outra habilidade em tornar o filme visível. Vocês não tinham isso mas mesmo assim conseguiram chegar a nomeação. Houve alguma estratégia em especial? Para além do mérito do filme, naturalmente.

Bruno Caetano: E também do mérito da Agência da Curta-Metragem, que já tem alguma experiência nestas coisas. Houve também um elemento diferenciador. O João, até antes da Agência ter traçado o percurso do filme, já tinha uma ideia muito concreta do que é queria fazer e onde é que queria estrear, e perdeu horas da sua vida a analisar quais eram os festivais que qualificavam os filmes para os Óscares, e onde é que valeria a pena tentar estrear. Porque Cannes, por exemplo, não serve para qualificar o filme. O que acho que o João não estava à espera, e também não estava à espera, é que o filme tivesse sido qualificado não uma, mas nove vezes nestes últimos nove meses.

E acho que não houve nenhum filme que tivesse nove qualificações. Há uma particularidade interessante: por norma, por ano, há uma média de 100 filmes qualificados para os Óscares nesta categoria. E este ano só houve 80 e qualquer coisa. Porque para além do “Ice Merchants”, houve outro filme que teve um percurso bastante interessante que, infelizmente, não foi sequer “shortlisted”, que era o “Love, Dad”.

João Gonzalez: Da Diana Cam Van Nguyen, que é minha amiga e é um filme fenomenal, e que fiquei chocado de não ter sido “shortlisted”.

Bruno Caetano: E entre estes dois filmes estamos a falar de 16 spots [correspondentes a outras tantas vitórias repartidas pelos dois filmes] que foram retirados da lista longa dos Óscares.

João Gonzalez: É muito importante destacar o trabalho do Benoit [Berthe Seward, fundador e estratega do The Animation Showcase, especializado em divulgar trabalhos de animação em contexto profissional nos EUA e colocá-los na rota dos Óscares]. Por coincidência, ele também representou o filme que ganhou o Óscar de Curta-Metragem de Animação do ano passado [“The Windshield Swiper”] e também representou o "Tio Tomás - A Contabilidade dos Dias". E ele faz um trabalho incrível de divulgação das curtas que ele representa, normalmente apenas cinco ou seis por ano e somente na indústria. Ele vai presencialmente mostrar os filmes à Pixar, à Disney, à Aardman… e esse trabalho de promoção teve obviamente um efeito ótimo no percurso do filme.

Bruno Caetano: E para além disso, também teve um efeito ótimo na nossa própria sanidade mental, porque vai chegar a um ponto que que é um bocado avassalador. São tantos mails, tantos pedidos, tantas entrevistas, tanta gente a bater-nos à porta… Por ótimas razões, não estamos a reclamar de maneira nenhuma, mas é realmente avassalador. E o Benoit ajudou-nos a relativizar as coisas todas. Ajudou-nos a criar uma lista de prioridades que nos permitiram achar que era possível fazer as coisas e não entrar em parafuso.

Ice Merchants

Que passos é que se seguem agora no vosso percurso em direção aos Óscares?

João Gonzalez: O próximo passo neste momento vai acontecer dia 13 de fevereiro, que é o Oscar Luncheon, que é o tradicional almoço com todos os nomeados. E nós já vamos estar lá em Los Angeles nesse dia. E a partir daí começa a parte da campanha assim mais intensiva. Aliás, para grande alegria nossa, o “Ice Merchants” também foi nomeado aos Annie Awards, que também são em Hollywood, a 25 de fevereiro. Portanto, fico lá simplesmente direto até a cerimónia.

Bruno Caetano: E vou aproveitar e estar com o João no Luncheon. Isto é daquelas coisas que uma pessoa não pode perder a oportunidade. Quando é que vamos ter outra oportunidade de estar numa sala com as pessoas mais importantes na nossa cultura cinematográfica e poder ter a sorte de estar numa mesa com eles e tirar uma fotografia em grupo com eles? Vou emoldurar aquilo e meter na minha mesa de cabeceira, não sai mais de lá.

E há um sorteio para determinar quem fica na mesa com quem, numa ideia de que todos os profissionais estão em pé de igualdade. O que quer dizer que vocês podem ficar na mesma que o Steven Spielberg, o Tom Cruise, ou qualquer um dos outros nomeados em qualquer outra categoria.

João Gonzalez: Exatamente. Nós estávamos a falar disso há bocado, isso põe-me mais nervoso que a cerimónia em si.

Bruno Caetano: Vão ser aqueles contactos pessoais enquanto estamos a comer. É ridiculamente estranho estarmos a falar destas coisas. É mesmo impensável. A única coisa que temos como certeza é que não vou ficar na mesma mesa que o João.

João Gonzalez: Sim, porque não ficamos como equipa, ficamos como nomeados soltos. Se não, imagina, corríamos risco de estar ali a falar um com o outro.

Uma coisa aliás importante de notar é que vocês passam de agora em diante, e para sempre, a ser Academy Award Nominees. A não ser que passem a ser Academy Award Winners…

João Gonzalez: É estranho pensar nisso, é verdade.

Bruno Caetano: É incrível! Olha, um dos telefonemas mais engraçados que tive foi de um tio meu - por acaso não te contei esta ainda, João. Há muitos anos, quando resolvi seguir cinema de animação, ele ligou-me muito preocupado a perguntar porque é que estava a estragar a minha vida, e porque que não ia pura e simplesmente trabalhar para a empresa do meu pai. E ele ligou-me desta vez a pedir imensas desculpas e a dizer que estava muito feliz e contente, que o tinha provado errado e da melhor forma possível. Portanto, são estas pequenas coisas que ajudam a tornar melhores estes momentos de caos. Porque desde a nomeação, não te iludas, foi caos total, numa montanha-russa de sentimentos. Desde as coisas que mais nos mais entristecem, como algumas dificuldades que estamos a tentar superar a nível de conseguir apoios para poder montar agora toda a campanha, até termos chamadas de pessoas que nos são queridas a dar os parabéns.

E estão a falar com os meios mais inesperados. Antes de nós, falaram com o “L.A.Times”…

Bruno Caetano: E daqui a dois dias vamos falar com a “Variety”. A minha mãe está a apanhar todos os jornais onde nós aparecemos e está a fazer um dossiê só com isso.

João Gonzalez: Os meus pais também.

Bruno Caetano: A minha mãe está com o coração cheio neste momento, o meu pai também. É muito fixe podermos dar estas alegrias aos nossos velhotes.

Ice Merchants
"Foram dois anos muito pesados de produção e é ótimo saber que o filme agora está a chegar às pessoas"

Notou-se uma grande empatia por parte das pessoas em relação à vossa nomeação e aquilo que pareceu ser uma genuína felicidade com a notícia. Calculo que para vocês isso também seja gratificante.

João Gonzalez: E ajuda, sem dúvida, a manter-nos mais sãos também. E o carinho todo que estamos a receber é algo muito especial para nós. Lá está, foram dois anos muito pesados de produção. E é ótimo saber que o filme agora está a chegar às pessoas e saber que as pessoas também estão interessadas em ver o filme e que perguntam onde é que podemos ver o filme. Deixa-me muito feliz.

Bruno Caetano: E agora ter a oportunidade também de exibi-lo em sala de cinema, a partir de dia 16. E depois, mais tarde, quem sabe, televisão, streaming. Todas estas possibilidades, muitas vezes, e como tu sabes muito bem, são inatingíveis para quem faz curtas de animação. Todas estas pequenas alegrias estão-nos a deixar com esperança para que consigamos ir ao encontro daquilo que o João disse no início desta conversa, que é mostrar o filme o máximo número de pessoas possível.

Ter o filme a estrear nas salas de cinema é um dos melhores prémios que temos até agora.

Provavelmente vai acontecer no Luncheon e calculo que também aconteça na cerimónia dos Óscares: o vosso nome vai ter de ser pronunciado por alguém que vai ler os nomeados. Têm alguma noção de como é que um americano vai conseguir fazer isso?

João Gonzalez: Tu acabaste de me fazer lembrar que recebi um mail da Academia a pedir para gravar o meu próprio nome, duas vezes, e ainda não mandei esse mail. Ainda bem que mencionaste isso porque tenho de o fazer rapidamente. Esqueci-me de lhes responder.

Bruno Caetano: Eu também, mas temos que fazer isso. Eles têm um número para onde nós ligamos e temos de dizer o nosso nome, assim de uma forma normal, para eles saberem como se pronuncia.

E daqui para a frente? Calculo que isto vai abrir muitas portas. A longa-metragem é uma coisa que te interessa particularmente ou não, João? Pergunto isto porque às vezes há a ideia de que todos os autores de curtas estão a fazer um estágio para fazerem uma longa-metragem mas a Regina Pessoa, por exemplo, diz que isso não lhe interessa, que só quer fazer curtas. Qual é o teu ponto de vista sobre isso?

João Gonzalez: A minha resposta é sempre a mesma. Vou fazer uma longa, ou melhor, vou lutar para fazer uma longa se alguma vez tiver uma ideia que acho que faça sentido ser resolvida com uma longa-metragem. As ideias que tenho tido até agora acho que funcionam melhor no formato curto. E se continuar a ser assim daqui para frente, continuarei a fazer curtas apenas. Mas se algum dia tiver essa oportunidade, e se tiver uma ideia que acho que faça sentido, lutarei por isso. Mas como tu disseste, não vejo as curtas-metragens de todo como uma preparação para depois ir para longa-metragem. E vejo muitas qualidades e coisas que aprecio em curtas-metragens que não seriam possíveis de ser realizadas em longas. Acho cada um dos dois meios tem a suas vantagens e desvantagens e neste momento estou interessado no formato curto.

Nota: Entrevista realizada em fevereiro, antes de Bruno Caetano e João Gonzalez seguirem viagem para Los Angeles.