Foi um dos filmes cuja pandemia obrigou a adiar, mas em 2023 vai ser dos primeiros a chegar às salas. Com estreia agendada para 26 de janeiro, "Amadeo", originalmente previsto para 2020, traz o olhar de Vicente Alves do Ó sobre um dos artistas plásticos nacionais mais idiossincráticos, ainda que a obra tenha demorado a ser reconhecida.

Nascido em Amarante em 1887, Amadeo de Souza-Cardoso acabaria por ter uma morte precoce aos 30 anos, vítima da gripe espanhola, numa casa da sua família em Espinho, em 1918. Outra cidade central no seu percurso, Paris acolheu-o e celebrou-o como artista modernista revelação, cruzando o seu caminho com os de Picasso ou Modigliani, entre outros vultos do seu tempo.

Vicente Alves do Ó créditos: Lusa

Em "Amadeo", o pintor surge na pele de Rafael Morais ("Sangue do Meu Sangue", "White Lines"), cuja presença esquiva, implosiva e intrigante é dos melhores motivos para descobrir um filme que recusa o rótulo biopic. "Acho que um filme biográfico conta uma biografia. Eu falo de uma vida, daquelas pessoas num momento da vida delas. Não quero que saibas tudo sobre a vida delas, quero que te aproxime delas, que as conheças", assinala Vicente Alves do Ó ao SAPO Mag num encontro com a imprensa em Lisboa.

O realizador e argumentista opta por se debruçar sobre três momentos da vida do retratado, mantendo o foco sobre episódios específicos da biografia de figuras das artes que já tinha proposto em "Florbela" (2012) e "Al Berto" (2017). "Amadeo" reforça o sentido de composição e a carga atmosférica (o trabalho de som meticuloso e a fotografia sombria de Rui Poças ajudam) e integra Rafael Morais num elenco no qual se contam Ana Lopes, Lúcia Moniz, Ana Vilela da Costa, Manuela Couto, Ricardo Barbosa, Raquel Rocha Vieira ou José Pimentão. E também Rogério Samora e Eunice Muñoz, aos quais o filme é dedicado e que têm aqui das suas últimas interpretações - o ator morreu em 2021, a atriz em 2022.

Amadeo

Apesar de ser das próximas novidades a chegar às salas, "Amadeo" não é a obra mais recente de Vicente Alves do Ó. Essa chama-se "Malcriado" e também se inspira numa figura real do universo artístico português: ele próprio, nascido em Sines há 52 anos e com atividade regular no cinema (e pontualmente na televisão) há mais de 20. "Agora está à espera de poder estrear", avança o realizador que também assinou "Quinze Pontos na Alma" (2011), "Golpe de Sol" (2018) ou a série "Solteira e Boa Rapariga" (2019). Mas para já, falemos das origens, singularidades e desafios de "Amadeo":

SAPO Mag - Como e quando surgiu a ideia de um filme sobre Amadeo de Souza Cardoso?
Vicente Alves do Ó - Já tinha anunciado várias vezes que queria fazer uma trilogia de poetas. Tinha feito o "Florbela" e o "Al Berto" e iria terminar essa trilogia com a Sophia de Mello Breyner. Acontece que, numa viagem ao Porto, vejo uma exposição do Amadeo e não só me apaixono pela arte dele - já conhecia mas confesso que não era um entendido, ainda não sou - como pela história. Comprei a fotobiografia no dia e aquilo deixou-me curioso. Despertou-me curiosidade sobre quem é este rapaz que morre aos 30 anos, que deixou uma obra absolutamente notável, que faz parte da história da arte moderna portuguesa, que convive com uma elite cultural em Paris, que está no olho do furacão quando tudo está a acontecer... É talvez o momento charneira do século XX e desaparece das nossas vidas e torna-se quase um mito. Então pus o projeto da Sophia de parte, ficou em banho-maria (risos). Hei-de fazer um dia.

Amadeo

De que forma trabalhou essa ideia inicial para chegar a este filme?
Decidi filmar a vida do Amadeo tentando, mais do que passar as obras - porque as pessoas podem consultá-las e é muito fácil vê-las -, tentar perceber onde é que eu achava que o Amadeo era relevante como homem, como pintor, como artista, como marido e como português. Imaginei todas as possibilidades de abordagem e acabei por chegar a uma que era fazer quase um tríptico, três momentos na vida do Amadeo que acho que são os três momentos fundamentais na sua história, onde podemos apreender um bocadinho quem é este homem. 1916, quando organiza a primeira grande exposição moderna em Portugal, no Passos Manoel, no Porto - que é um espaço que já não existe, hoje está lá o Coliseu do Porto. Depois escolhi 1911, quando ele se assume como pintor em Paris, apresenta os seus primeiros trabalhos e faz uma vernissage em casa, às luz das velas, conjuntamente com o Modigliani e convida o Picasso e toda a sua tour para ir ver as suas obras. De alguma forma, vivemos um bocadinho essa vida a que ele, no capítulo anterior, tanto anseia voltar e percebemos porquê: ali é que ele se cumpre. E depois 1918, o ano em que tudo acontece. Ou seja, filmo 1918 porque preciso de filmar as razões pelas quais este homem desaparece do mapa e porque é que aquela mulher [Lucie Pecetto, esposa do artista], que sobrevive, pega na obra dele e guarda-a em casa durante 80 anos até que finalmente é cedida e vendida à Gulbenkian. Passamos a ter este legado mais perto de nós, depois de ter estado fechado durante tanto tempo num pequeno apartamento. E que acabou por fazer com que o seu nome não esteja tão inscrito na história universal. Lá fora, pouco se fala sobre a sua participação no movimento modernista, ficou muito tempo esquecido.

Vicente Alves do Ó e o filme
Al Berto

Conforme mencionou, já fez dois filmes de época inspirados em figuras reais antes deste, "Florbela" e "Al Berto". Que ensinamentos tirou dessas experiências para se preparar para "Amadeo"?
Estou mais preparado. É difícil, temos pouco dinheiro e tens de ir aprimorando o teu olhar, a tua técnica, para conseguir vencer muitas coisas quando o dinheiro é curto. Isso aprende-se, mas é preciso tempo para o fazer. Fazer os dois primeiros preparou-me muito mais, até mesmo para o embate das opiniões. Muita gente tem ideias cristalizadas sobre aquelas pessoas que admira muito e tem muita dificuldade quando vem uma pessoa de fora que as desmonta como elas a veem. E nem sempre gostam muito... Mas a única coisa pela qual acho que um filme se pode tornar interessante e relevante é exatamente por isso. O filme, como obra de arte que é, não é uma tese de doutoramento, é um espaço de imaginação que pode acrescentar uma visão sobre uma pessoa da qual conhecemos pouco. Ele morreu há 100 anos, não há imagens dele a falar, por isso partimos todos dos mesmos dados: cartas, algumas opiniões de pessoas que viveram com ele e que escreveram sobre ele, as obras, os sítios onde morou, a condição social, vamos todos por aproximação para desenhar uma imagem. Desenhei a minha e tentei que ele fosse muito contemporâneo. Falo de uma coisa que hoje está muito em voga, a do artista que não tem escolas. há um trabalho que se assume como individual, sempre em mutação, experimentação. Nesse aspeto, ele é muito moderno. Podia ser um jovem com 30 anos a pintar agora a fazer exatamente aquilo e faria todo o sentido hoje, 100 anos depois. Até na atitude ele era moderno, e foi mais a atitude que me interessou ali. E depois gosto muito de trabalhar a época. Interessa-me essa coisa da memória, do tempo e do passado. E o cinema é uma excelente forma de explorar isso.

Amadeo

O que mudou na sua forma de olhar para Amadeo e para a sua obra enquanto foi desenvolvendo o filme?
Tornou-se mais contemporâneo, lá está. Também tinha uma imagem mais cristalizada dele. Temos de o por a fazer coisas. É muito giro ler as cartas dele, mas tenho de o por a comer, pensar como é que come, como é que se veste, como anda a cavalo, como pinta, como fuma e acende um cigarro. Tenho de o tornar vivo. Por exemplo, os dias no campo têm muitas horas, por muito que o atelier seja simpático. Não há a velocidade da cidade. Tens muito tempo para trabalhar, mas também para pensar, para duvidar, para questionar, para te exasperares com o que tens ou não tens. Ele é uma espécie de animal felino enclausurado a tentar perceber como é que pode fugir dali. Como é que o faz? Pinta até não poder mais.

Toda essa conceção de um quotidiano foi feita ao lado de Rafael Morais. Como foi o processo de casting e porque viu nele a escolha ideal para encarnar Amadeo?
Houve um processo de casting, vi vários atores e qualquer um deles podia ser o Amadeo. Mas a minha versão do Amadeo, lá está, era mais contemporânea. E o Rafael trazia-me isso. E trazia outra coisa: há sombra no Rafael, há perigo, há um instinto na forma como atua, é uma coisa muito pouco teatral, muito pouco académica. Queria uma animal. Vejo o Rafael um pouco como um tigre, um animal de grande porte preso. O Rafael acrescenta uma camada imprevisível ao Amadeo. Os outros seriam outra versão. Havia o Amadeo mais preocupado com a ideia de classe, de religião e conservadorismo, que também a tem, e que choca com o trabalho dele. Mas escolhi a versão que mais queria comunicar no filme.

Amadeo
Eunice Muñoz em 'Amadeo'

Além de Rafael, há um elenco vasto e heterogéneo. Mas torna-se difícil não destacar dois nomes em particular, Eunice Muñoz e Rogério Samora, aos quais dedicou o filme. Como os vê a presença deles em "Amadeo" à luz dos acontecimentos que se seguiram?
Trabalhar com o Rogério e com a Eunice foi um privilégio e confesso que só tenho pena de não ter trabalhado mais cedo com eles porque era ambos maravilhosos e muito bons atores. Pela forma como trabalharam, como se dedicaram, como a Eunice foi encantadora e como me ensinou tanta coisa naqueles dois dias. E sim, é um elenco muito heterogéneo porque gosto de criar elencos assim. Deram-me uma oportunidade e também gosto de dar oportunidades. Gosto que os meus elencos sejam uma mistura de pessoas conhecidas, outras menos, umas que vou buscar ao teatro, outras às escolas... O que me interessa é que sejam bons, e se as pessoas não os conhecem, então passam a conhecer.

TRAILER DE "AMADEO":

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