Pecadores
A HISTÓRIA: Na tentativa de deixar para trás as suas vidas problemáticas, dois irmãos gémeos regressam à sua cidade natal para recomeçar, apenas para descobrir que um mal ainda maior está à espera para os receber de volta. “Se continuares a dançar com o diabo, um dia ele vai seguir-te até casa.”
"Pecadores": nos cinemas desde 17 de abril.
Crítica: Manuel São Bento
(Aprovado no Rotten Tomatoes. Membro de associações como OFCS, IFSC, OFTA. Veja mais no portfolio).
Atenção: Inclui spoiler sobre "um mal ainda maior" revelado nos trailers, mas não incluído na sinopse oficial.
O verão aproxima-se, o que significa a chegada em massa dos "blockbusters" mais aguardados pelo grande público. De "Missão: Impossível - O Ajuste de Contas Final" a "Do Universo de John Wick: Ballerina", de "O Quarteto Fantástico: Primeiros Passos" a "Superman", passando ainda por "Mundo Jurássico: Renascimento" e a nova versão em imagem real de "Como Treinares o Teu Dragão", 2025 reserva para os meses mais quentes as suas grandes apostas de bilheteira.
No meio deste cenário dominado por franchises e "Propriedades Intelectuais" reconhecíveis (IP, pela sigla original) é um verdadeiro alívio que "Pecadores" ("Sinners") chegue às salas esta semana - uma obra original deste calibre merece, sem dúvida, atenção exclusiva.
Realizado e escrito por Ryan Coogler ("Creed", "Black Panther"), "Pecadores" é uma ousada incursão cinematográfica que mistura géneros com uma confiança rara no atual panorama de Hollywood.
O filme transporta os espetadores para os anos 1930, para o seio de uma comunidade afro-americana marcada por profundas feridas históricas e espirituais. A narrativa acompanha dois irmãos gémeos, Smoke e Stack (interpretados por Michael B. Jordan), que regressam à sua terra natal para enfrentar os fantasmas do passado. Uma ameaça começa a perturbar o frágil equilíbrio da comunidade, obrigando todos a confrontar não só os monstros exteriores, mas também os demónios que carregam dentro de si.

Coogler, já consagrado pelas suas obras anteriores, revela aqui uma liberdade criativa absolutamente inspiradora. Ao conjugar espetáculo visual com uma abordagem humanamente consciente, entrega um filme que, acima de tudo, estuda opressão racial, utilizando o vampirismo como metáfora poderosa e incisiva para o racismo sistémico e a exploração intergeracional.
As cenas mais violentas, com vampiros a literalmente sugarem a vida das suas vítimas, não são apenas momentos de choque - transformam-se uma representação simbólica de como o sistema se alimenta da cultura, arte e vitalidade da comunidade negra. A decisão de situar a narrativa na década de 1930 - plena era da segregação nos EUA - não serve apenas como pano de fundo histórico, mas como uma escolha ideológica que reforça a densidade temática da obra.
Neste contexto profundamente cultural, a música assume um papel central. Ludwig Göransson ("Oppenheimer"), colaborador habitual de Coogler, compõe uma banda sonora arrebatadora que vai muito além da sua função tradicional. Ritmos pulsantes, batidas de pé, palmas sincronizadas e letras carregadas de simbolismo criam uma atmosfera quase ritualística e hipnotizante. A música não só amplifica as emoções, como guia a narrativa, amplifica a tensão e eleva os momentos mais catárticos. É, sem dúvida, o elemento mais imersivo de todo o filme e um dos principais responsáveis por manter o público colado ao ecrã do primeiro ao último segundo.

No que toca à fusão de géneros, "Pecadores" é das experiências mais ambiciosas da última década. Drama histórico, "thriller" sobrenatural e homenagem ao horror dos anos 1980, tudo embrulhado com gangsters, vampiros, tiroteios estilizados, sequências musicais vibrantes, toneladas de sangue, mortes grotescas e até toques de humor negro - sempre equilibrados de forma a não caírem no absurdo.
Pessoalmente, a influência do cinema de horror passado é particularmente evidente, tanto nos efeitos práticos como na encenação das mortes mais gráficas, onde Coogler não poupa na intensidade visual, mas nunca perde o foco no peso emocional de cada momento. A preparação para o clímax é feita com uma mestria invejável - uma panela que vai fervendo lentamente até explodir num terceiro ato absolutamente caótico e inesquecível. A câmara de Autumn Durald Arkapaw ("Black Panther: Wakanda Para Sempre") acompanha este crescendo com elegância e energia, mergulhando o público no caos sem nunca sacrificar a clareza visual.
As interpretações são consistentemente fortes, com o elenco a funcionar como um todo coeso. Michael B. Jordan oferece mais uma performance intensa e emocionalmente rica, enquanto Hailee Steinfeld ("Indomável", "The Edge of Seventeen") irradia carisma e presença. Jack O'Connell ("Invencível", "Ferrari") assume o papel do antagonista vampírico com uma contenção perturbadora. Mas é Miles Canton quem verdadeiramente se destaca como a revelação de "Pecadores". A sua voz bluesy, profunda e cheia de alma é magnética, mas é o seu desempenho dramático - subtil, autêntico, comovente - que o confirma como um nome a seguir com atenção nos próximos anos.

Tematicamente, "Pecadores" mergulha também no espiritualismo e na identidade cultural, explorando práticas e crenças ancestrais com respeito e complexidade. A ligação entre passado espiritual e presente traumático é tratada com uma sensibilidade rara, oferecendo ao público uma reflexão profunda sobre como o legado cultural e espiritual molda o presente das comunidades oprimidas. Redenção é igualmente um pilar central da narrativa, sendo o arco dos irmãos gémeos uma procura por reconciliação e transformação pessoal - uma tentativa de quebrar ciclos e corrigir pecados.
Voltando à cinematografia de Arkapaw, é necessário destacar os vários planos-sequência que percorrem os cenários com graciosidade e tensão, acompanhando as personagens em momentos íntimos ou de caos extremo. Ainda assim, nem tudo é perfeito: "Pecadores" demora a arrancar, tendo cerca de meia hora dedicada à introdução de personagens e dinâmicas que nem sempre contêm o mesmo interesse. Apesar disso, Coogler consegue ajustar o ritmo antes que este se torne um problema mais sério.
No entanto, existe um par de decisões narrativas frustrantes. Começar o filme com uma das cenas finais é uma escolha criativa que raramente resulta e aqui retira a tensão de certos momentos cruciais, nomeadamente no que diz respeito ao destino de uma personagem central. A conclusão, por sua vez, sofre também de alguma indecisão com várias falsas saídas que acabam por diluir o impacto final.

"Pecadores" é uma prova bem viva de que os maiores estúdios da indústria ainda conseguem criar obras artísticas, provocadoras e emocionalmente poderosas. Com uma mão segura e criativamente inspirada na realização, uma banda sonora inesquecível merecedora de prémios, prestações consistentes e uma abordagem temática riquíssima sobre opressão racial, identidade cultural e espiritualidade, não é exagero considerar esta obra como uma das mais impactantes do ano até à data. Um espetáculo intenso e memorável, com um comentário social afiado que merece ser visto no maior ecrã possível.
Nota: Há duas cenas pós-créditos. A primeira é essencial, preenchendo algumas lacunas deixadas pelo desfecho principal, enquanto que a segunda é apenas uma pequena prenda para quem se apaixonou pela componente musical do filme e pela voz fascinante de Canton.
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