De "Megafone", editado em 1997, a "Megafone 4", de 2005, João Aguardela deixou uma obra que, por um lado, resultava de uma audição e pesquisa minuciosas das recolhas de Michel Giacometti e José Alberto Sardinha e, por outro, usava essa matéria-prima como mote para uma descontrução - simultaneamente respeitosa e lúdica - de cânticos tradicionais, cruzando-os com ferramentas e ideias da era do sampler.

A morte do ex-músico dos Sitiados, Linha da Frente e A Naifa, em Janeiro de 2009, não permitiu que o quinto disco chegasse a concretizar-se e, por isso, Megafone 5 acabou por ser o nome de uma associação que tenta manter vivo o seu espírito de (re)descoberta e recontextualização das raízes da música nacional - e que distinguiu já alguns novos projectos que partilham alguns dos seus pontos de partida.

Mas mesmo que seja uma obra inacabada, a discografia de Megafone deixa um testemunho cuja vertente pioneira e sentido de aventura a tornam numa ausência a lamentar nos escaparates. E se os seus quatro álbuns estavam já disponíveis para download gratuito no seu site oficial, esta iniciativa louvável não compromete uma reedição em formato físico.

A viagem por vozes e melodias de outros tempos, onde cabe Portugal inteiro - do Minho ao Algarve, não esquecendo as ilhas -, teve início em 1997. Na altura, a expansão do drum n' bass não passou despercebida a Aguardela, que deixou no primeiro volume de Megafone um dos primeiros contactos com o género feitos por cá. Mas drum n' bass à portuguesa, como pode ouvir-se em "Senhora do Carmo" ou "Encomendação das Almas", onde vozes de velhas senhoras têm como companhia improvável batidas cruas e agressivas. No alinhamento cabem ainda outras vertentes da música de dança mais dinâmica, como o techno abrasivo que divide protagonismo com a gaita de foles em "Canto de São João".

Importante pela forma como colocou em contacto o passado e o presente, "Megafone" é contudo o mais datado e esquemático destes quatro discos, um esboço interessante de uma obra que ganharia maior apuro e personalidade pouco depois.
"Megafone 2", no ano seguinte, foi o primeiro desses passos em frente, com menos fusões em estado bruto e cenários mais versáteis. "Vaca", breve devaneio frenético, está próximo do primeiro disco, mas "No Fim da Noite", algures entre o fado (com a oportuna presença da guitarra portuguesa) e a banda-sonora de um irreverente filme de espionagem, sugere outras direcções. Assim como o implosivo "Encomendação das Almas", onde cânticos religiosos vão contando, passo a passo, com complementos do baixo, piano, percussão e texturas electrónicas. Ao contrário do álbum anterior, Aguardela aceitou aqui várias colaborações e cantou em alguns temas, nem sempre recorrendo a samples como matriz para as canções (como em "Maçadela", onde se junta ao acordeão de Sandra Baptista, dos Sitiados).

Em 2001, "Megafone 3", talvez o mais polido e acessível dos quatro discos, encetou contactos com linguagens do hip-hop - na forma como combina samples vocais e electrónica em "Real" -, aprimorou as piscadelas de olho às pistas - no saltitante "Tudodance" -, não esqueceu a aura atmosférica e cinematográfica - presente na tensão de "Lavrar" - e deu ao projecto o tema que mais se aproximou de um hit, com um assinalável sentido de humor - o single "Aboio", que faz a festa a partir de uma história de um pastor mirandês.

No último volume, "Megafone 4", de 2005, Aguardela voltou a dar voz a algumas canções, sugerindo aquilo a que os Sitiados poderiam soar numa versão para o século XXI. A bizarra crónica familiar de "Alemanha" será o exemplo mais conseguido e "Frei João" destaca-se por ter como base instrumental os acordes de "Seven Nation Army", dos White Stripes. Mas os samples das recolhas de Giacometti e Sardinha continuam presentes e a sua apropriação convence em momentos como "Vozes", lamento de mulheres de marinheiros com travo parisiense, ou "Alto" e "Moda da Lavoura", onde cânticos melancólicos surgem aliados a teclados coloridos e contagiantes.

Se "Megafone 4" acabou por ser o derradeiro disco do projecto, a ousadia e criatividade de Aguardela não ficaram esquecidas nestes registos. Basta ouvircanções de nomes mais recentes como os Galandum Galandaina, O Experimentar Na M'Incomoda e Bandarra, entre outros, para perceber que, à semelhança da música tradicional que recuperou, este Megafone continua a fazer eco.

@Gonçalo Sá

Videoclip de "Aboio":

Videoclip de "Repisa":