Até agora, a indústria da música salvava-se de um acerto de contas com o movimento #MeToo, como o que envolveu Hollywood e a comunicação social, mas as acusações contra o magnata do hip-hop Sean "Diddy" Combs podem marcar uma mudança.

Segundo as denúncias, o artista dirigia uma rede sexual criminosa que se aproveitava de mulheres e as chantageava para que ficassem caladas, o que indica que pode ter chegado o momento de o mundo da música começar a prestar contas.

Há cinco anos, quando se tornaram públicas acusações explosivas contra o cantor de R&B R. Kelly, alguns meios questionaram-se se este seria o início de uma mudança radical na indústria da música.

Kelly foi condenado a mais de 30 anos de prisão por crimes sexuais contra menores, tráfico sexual e associação criminosa, no primeiro julgamento importante por abuso sexual em que a maioria das autoras das acusações eram mulheres negras.

Ao longo dos anos, mulheres acusaram figuras poderosas da indústria, como o cantor Marilyn Manson, o magnata Russell Simmons, o DJ Diplo e o produtor Dr. Luke, com repercussão discreta. O mais recente é a estrela de música country Garth Brooks.

Descartáveis

R. Kelly em maio de 2019

"As estrelas de rock gozam de um tratamento privilegiado, devido ao seu estatuto", explicou à France-Presse Caroline Heldman, professora da Occidental College e fundadora da associação Sound Off, dedicada à violência sexual na indústria da música.

Considerada por muito tempo um reduto de sexo e drogas, nesta indústria as mulheres “são vistas como muito mais descartáveis do que os homens”, destacou a investigadora Kate Grover.

Além disso, as vítimas dos processos de Kelly eram jovens negras e mulheres que “não tinham o poder de estrela de muitas das atrizes que denunciaram Harvey Weinstein”, o outrora poderoso produtor de cinema de Hollywood, condenado por violação e abuso sexual.

Problemas sistémicos

Desde a denuncia da sua ex-companheira e cantora Cassie Ventura, no ano passado, uma dúzia de pessoas processaram Combs, que está preso em Nova Iorque enquanto aguarda julgamento. Agora, mais de 100 vítimas preparam-se para mover uma nova ação contra o rapper.

Ao processo de Cassie seguiu-se uma vaga de denúncias contra outros nomes poderosos da indústria, de artistas a diretores-executivos, numa série de acusações que destaca “a gravidade da situação”, escreveu em dezembro passado a cantora, compositora e ativista Tiffany Red, que trabalhou com Cassie, em carta aberta a Combs.

“Os problemas sistémicos da cultura da violação e da misoginia profundamente arraigados na indústria da música representam uma ameaça real e diária à segurança de muitas pessoas neste negócio", escreveu Tiffany.

E acrescentou: "Como podemos esperar uma mudança significativa quando as posições elevadas e superestrelas enfrentam acusações relacionadas com estes crimes?"

Caroline Heldman também apontou o que chamou de comportamentos de mercado “perversos”: as vendas de Kelly subiram mais de 500% após a sua condenação por chantagem, com um aumento de 22% nas reproduções na semana seguinte.

As reproduções de músicas de Diddy, por sua vez, aumentaram 18,3% em média na semana posterior à sua prisão, em comparação com a anterior, segundo a empresa de dados do setor Luminate.

Parte desse aumento pode ser o resultado da curiosidade despertada por um nome quando ganha destaque na imprensa, mas Caroline também citou a indulgência de que os músicos desfrutam.

“Nestes anos em que trabalho com sobreviventes de diferentes setores, nunca vi nada como a devoção dos fãs pelos artistas", comentou a professora, ressalvando, no entanto, que ousaria "antecipar que qualquer artista violador que trabalhava com a ideia de que podia silenciar as sobreviventes sabe que isso acabou”.