O arranque fez logo temer o pior. Numa sala pouco concorrida, depois de uma noite também sem grande adesão no Coliseu do Porto, Anohni começou por oferecer ao público, na passada quarta-feira, uma projeção de imagens a preto e branco de Naomi Campbell, protagonista do videoclip de "Drone Bomb Me" (um dos singles de "Hopelessness", editado este ano e mote para o espetáculo).
Entregue a movimentos de dança em câmara lenta, acompanhados de um burburinho a sugerir prenúncios de temporal, a antiga modelo foi a primeira de muitas mulheres a fixar a câmara - e os espectadores - ao longo da atuação. Mas ao fazê-lo durante vinte minutos centrados nesse loop visual e sonoro, deixou uma introdução pouco auspiciosa quando um quarto desse tempo já teria dado conta do recado. Assim, o suposto apelo à concentração foi tendo o efeito contrário e deixou algum público disperso, convocou assobios pontuais e levantou dúvidas em relação às opções do espetáculo que se seguiria - um espetáculo que dificilmente poderá ser considerado um concerto.
A artista transsexual até aqui conhecida como Antony Hegarty, dos Antony and the Johnsons, já tinha alertado que a apresentação do seu álbum de estreia enquanto Anohni teria contornos diferentes do habitual num concerto pop. Mas não teremos saído a ganhar com a troca depois de uma introdução tão longa e presunçosa, que só seria desculpável caso conduzisse a um espetáculo de grande fôlego. Ou pelo menos um espetáculo mais interessante do que o que a noite guardava.
Infelizmente, o que se seguiu deixou a desejar tanto pela duração - pouco mais de uma hora - como pelo formato. Se em "Hopelessness" Anohni propôs uma transfiguração surpreendente, desviando-se da pop de câmara do projeto anterior, intimista e pessoal, rumo a uma eletrónica com uma postura mais engajada e incisiva, aberta ao mundo como até aqui nunca tinha feito (apesar de questões de identidade de género ou preocupações ecológicas já estarem no trabalho anterior), a passagem para o palco manteve pouca dessa urgência.
Acompanhada de dois músicos, Dan Lopatin (ou Oneohtrix Point Never, que produziu o disco ao lado de Hudson Mohawke) e Chris Elms (colaborador habitual de Björk), a cantora apresentou-se com uma túnica, capuz e o rosto coberto, um contraste com os grandes planos de muitas mulheres, de várias idades e etnias, que foram sendo projetados no ecrã ao fundo do palco.
Cada canção foi contando com uma cara diferente, quase sempre com uma expressão magoada enquanto entoava a letra, processo através do qual Anohni quis dar voz àquelas que poucas vezes se fazem ouvir. E em última instância, deu-lhes também o seu rosto, ocultando-o do público.
O gesto feminista até pode ser sincero, e faz sentido quando integrado no contexto de um disco como "Hopelessness", com canções de protesto cujas questões são tão contemporâneas como a sonoridade: vão do apontar de dedo ao militarismo dos EUA aos perigos do aquecimento global, temáticas embaladas em eletrónica vanguardista q.b. (o discurso poderá ser debatível, mas a tomada de posição é meritória). Só que a opção estética seguida ao vivo não fez justiça a alguma da pop mais subversiva do ano, assentando numa sucessão de rostos cujo efeito se esgota ao fim de um par de temas.
Tendo em conta esta limitação cénica e a pose discreta dos dois músicos, cabia inteiramente a Anohni dar alguma intensidade e alma ao espetáculo. Mas não só nunca se dirigiu ao público, limitando-se a debitar as canções num registo de linha de montagem, como por vezes nem pareceu dar conta de que estava a ser observada. A postura estática dos primeiros momentos em palco foi dando lugar a ligeiras movimentações, mas o mero abanar de braços não foi grande avanço face à mera figura de corpo presente - em algumas situações até foi mais constrangedor, ao nível da dança numa sala de estar entre amigos. E assim valeu-lhe apenas a voz, tão possante e maleável ao vivo como em disco, mesmo com a sugestão do playback a aparecer em alguns momentos - e a piorar o balanço de uma atuação com tantos instrumentais pré-gravados.
Se é verdade que desta forma o espetáculo foge ao modelo convencional de concertos pop, a ousadia fica-se pela aproximação a uma mostra de videoclips já de si pouco interessantes. E é pena quando não faltaram boas canções, desde singles convidativos como "Drone Bomb Me" e "4 Degrees" ao desconcertante retrato do "Big Brother" (ou, no caso, "Big Daddy") de "Watch Me", passando pela balada "I Don't Love You Anymore", um dos raros pontos de contacto de "Hopelessness" com a fase Antony and the Johnsons. Já "Obama" mostrou-se um tremendo acidente ao vivo, com a imponência sóbria do original a resvalar para a maior cacofonia da noite - a sobreposição de vozes, cantada e gravada, não ajudou.
Quando a nível performativo houve tão pouco a reter - é difícil encontrar um espetáculo que não deixe um momento memorável entre o artista e o público -, a única mais-valia da noite foi a interpretação de canções inéditas, que não chegaram a compor o alinhamento do álbum. Temas como "Paradise", "Ricochet" ou "In My Dreams" deixaram no ar que a criatividade de Anohni está longe de se limitar ao primeiro disco, prometendo tão bom ou melhor a caminho. Mas espetáculos como este obrigam a pensar duas, três ou quatro vezes antes de voltar a sair de casa para a ouvir.
Fotos: Rita Sousa Vieira
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