A primeira canção que tocou numa guitarra foi "Twist & Shout", que ainda hoje inclui nos concertos, mas de então para cá Bruce Sprinsteen já deixou, como poucos, os seus próprios hinos na memória coletiva - tanto na norte-americana como fora de portas, e na da classe trabalhadora em particular.

Conforme assinalou na autobiografia "Born to Run", editada em 2016, o músico que chegou esta semana aos 70 anos considera que "Born in the USA" é uma das melhores e mais incompreendidas canções do repertório e que foi com o álbum "Darkness on the edge of town" (1978) que encontrou a "voz adulta".

Bruce Springsteen: quem o viu e quem o vê

Nesse livro de quase 600 páginas, editado em vários países, incluindo Portugal, o cantautor recordou, de forma cronológica, a vida privada e pública até à atualidade. Springsteen decidiu escrevê-la depois de ter atuado em 2009 com a E Street Band na Superbowl, a final do campeonato norte-americano de futebol.

Foi aí que, ao fim de um percurso artístico de décadas, mergulhou em reflexões sobre a educação católica em Freehold, Nova Jérsia, onde cresceu com uma família de ascendência italiana e irlandesa, e ou sobre a relação tumultuosa com o pai, a quem foi diagnosticada esquizofrenia paranoica.

Antes de se tornar numa das vozes mais singulares da América, viveu uma infância e adolescência já dominada pela música, formando os Castiles, "épica escola primária do rock", e os Steel Mill, que tocavam "música pesada para a classe trabalhadora".

Só mais tarde formaria e lidera até hoje a E Street Band, onde reina uma "ditadura benevolente", à frente de músicos como o saxofonista Clarence Clemons, que morreu em 2011, o guitarrista Steve Van Zandt, o "principal conspirador do rock'n'roll", e a cantora Patti Scialfa, mulher e mãe dos seus três filhos.

Bob Dylan, Rolling Stones, Van Morrison, Roy Orbinson, Elvis Presley são alguns dos "heróis" de um cantautor que assume que sempre quis ser uma voz que refletisse a experiência e o mundo em que vivia.

"Cresci nos anos 1960, pelo que a consciência social e o interesse pela política estão gravados no meu ADN cultural. Mas na verdade, foram as questões de identidade que se tornaram proeminentes após o meu sucesso", sublinhou no livro.

Reconhece defeitos - é egocêntrico e controlador - e também limitações: "A minha voz jamais ganharia prémios. O meu acompanhamento com guitarra era rudimentar, por isso restavam-me as canções. As canções teriam de dar nas vistas".

"A minha escrita estava centrada nas questões de identidade - quem sou, quem somos, o quê e onde é a nossa casa, de que é feita a masculinidade ou a idade adulta, quais são as nossas liberdade e as nossas responsabilidades", recorda.

Bruce Springsteen diz adeus à Broadway mas instala-se na Netflix
créditos: Robert DeMartin

Lado a lado com o crescimento artístico, Springsteen teve de lutar contra uma depressão crónica, descrita como "um derrame de petróleo", um "vulcão adormecido".

Para ele, que considera a sobriedade é uma "espécie de religião", a música funciona como o 'Santo Graal' da existência: escrever, compor, cantar, gravar, planear e estar em palco.

"A minha capacidade de manter a energia durante concertos com mais de três horas ao longo de 40 anos (...), com uma resistência inabalável, surgiu por me aperceber de que tinha de usar tudo ao meu dispor para vos levar onde eu queria que fôssemos", assume.

Aos 70 anos, parece continuar a juntar cada vez mais vozes à sua, como o confirma a residência de 236 espetáculos na Broadway, entre 2017 e 2018, que acabaram por gerar um especial da Netflix. Ou "Western Stars", o seu 19.º álbum de originais, editado este verão. Décadas depois dos primeiros acordes em Nova Jérsia, "Baby, we were born to run" continua a ser o mote desta história.