A peça de Shakespeare (1564-1616) conta a história do ateniense Timão que gasta todo o dinheiro, entregando-o a amigos e pessoas interesseiras, antes de se tornar misantropo, estabelecendo "uma reflexão sobre dívida, mentira e hipocrisia social", disse à Lusa o encenador Nuno Cardoso, quando da estreia da peça, no Porto, em abril passado.
Trata-se de "um retrato cruel, mas ao mesmo tempo irónico, quase 'fársico', das relações de interesses, que se estabelecem, e do 'lobbysmo', como agora se diz. Por detrás disso tudo está a crueldade da dívida, da economia real, do deve e do haver registado ou, no nosso caso, os atores do recibo verde e da entrega do IRS”, sublinhou o diretor artístico da companhia Ao Cabo Teatro.
O texto foi trabalhado por Nuno Cardoso desde 2010, na sequência da crise e da intervenção da ‘troika’ em Portugal, em que “todo o país entra em choque traumático face à dívida e à perda de soberania”, e inaugura um programa de quatro peças intitulado “Dívidas, Dúvidas, Mentiras e Revoluções”.
“É constituído pelo ‘Timão’, o ‘Pulmões’ [do inglês Duncan MacMillan], uma reflexão de um casal sobre o ecossistema, pelo ‘Bella Figura’ [da francesa Yasmina Reza], sobre a traição, e acaba com ‘Morte de Danton’ [de Georg Buchner], uma reflexão sobre a revolução”, revelou Nuno Cardoso.
Com a peça de Shakespeare, vem o “desejo de revisitar uma sociedade iludida pela sua própria vertigem, de uma forma quase subliminar e ínvia, em que o consumismo se tornou a única ideologia predominante”, que está “presente em tudo, na maneira como a sociedade se tornou visual, sem tempo, e como se organiza para, de quinta a domingo, o resto do dia ser um esquecimento da exploração do trabalho”.
O choque com o “’economês’ que domina e ao mesmo tempo se esconde perante o 'glamour' de uma aparente ‘happy hour’ que domina as pessoas, e as torna ‘hiperindividualistas’ e egoístas”, encontra o momento de crise, que transforma a realidade numa “crueldade absoluta”, reproduzindo-se de forma física e digital.
“Quando uma crise acontece, seja a de 2010 ou no seio de uma família, de uma relação, de uma cidade, é eminentemente corporal, material, tem consequências de saúde. É, portanto, uma chamada brutal à realidade, à realidade animal. Foi por causa de tudo isso que decidimos fazer esta peça”, explicou o encenador.
Com uma cenografia que aponta a cidade como uma casa de banho pública e, a floresta selvagem, como uma montra de centro comercial, numa “interpretação de uma cidade” como metáfora e opinião, a representação dos atores é “dos dias de hoje”, criando em conjunto “um espaço de jogo lúdico, em que a palavra é ação”, que contém “o tempo desta sociedade, mas também a recusa desse tempo”, sem o recurso à tecnologia inserida no que é “teatro no mais clássico possível”.
Com um elenco de 11 atores, esta coprodução da Ao Cabo Teatro atravessa linguagens que vão da dança ao ‘vaudeville’ ou à utilização de máscara neutra.
Além de “Timão de Atenas”, Nuno Cardoso apresenta ainda, no foyer do S. Luiz (sala Bernardo Sassetti), em Lisboa, “Apeadeiro”, em cena na sexta-feira e no sábado, e nos dias 20 e 22, sempre às 19:00.
“Timão de Atenas”, por seu lado, fica em cena na sala Luís Miguel Cintra, até 23 de setembro, com espetáculos de quinta-feira a sábado, às 21:00, e, aos domingos, às 17:00.
Trata-se da última etapa do tríptico de solos de cariz autobiográfico de Nuno Cardoso.
“O meu corpo é a minha terra, a minha terra está no meu corpo” foi o pressuposto de que partiu o autor (nascido em Canas de Senhorim, no distrito de Viseu), para este trabalho.
Para os mais novos, nesta abertura de temporada, o S. Luiz propõe, na rubrica Fora de Portas, uma criação de Cláudia Gaiolas intitulada “Antiprincesas” e que parte da coleção de livros homónima editada pela Tinta da China e pela empresa municipal de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC).
Juana Azurduy, uma mulher-mãe-guerreira de origem indígena que lutou por um país melhor e pela independência da Bolívia, é a retratada nos espetáculos de sábado e domingo - repetem no próximo -, no parque José Gomes Ferreira, em Alvalade. A interpretação é de Leonor Cabral, a cenografia e figurinos de Ângela Rocha.
Comentários