Editado em abril do ano passado, "Pleasure", o quinto álbum de Leslie Feist, não será propriamente novo mas ainda é o disco mais recente da canadiana e o pretexto para um reencontro com o público português, seis anos depois da visita anterior. Só que o espetáculo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, este domingo - após uma atuação no Theatro Circo, em Braga, no sábado - esteve longe de se limitar à última fornada de canções, percorrendo quase todos os registos da cantautora que se tem afirmado, desde "Let It Die" (2004), como uma das mais emblemáticas do cenário em tempos considerado alternativo.
O peso de um percurso confiável terá ajudado, aliás, para que ninguém pareça ter sentido assim tanta falta da insistência nas canções do disco mais recente, mesmo que "Pleasure" tenha vindo reforçar, depois do corte de "Metals" (2011), uma faceta mais despojada da sua autora - de alma folk e blues, já sem a maquilhagem indie pop dos primeiros álbuns.
Se por alturas de "The Reminder" (2007) Feist apostava em concertos com alguma pompa e circunstância, vincados por uma atenção minuciosa com o aparato cénico, o deste domingo manteve-se tão sóbrio como as canções dos últimos discos, de estruturas e produção por vezes quase esquelética.
A canadiana tem, no entanto, recursos vocais capazes de sustentar esse mergulho interior mais agreste, mesmo que uma constipação lhe tenha trocado as voltas nas últimas semanas. Ao entrar em palco, a cantora deixou logo a advertência de que a sua voz poderia não estar na melhor forma, recorrendo a uma gravação de um tradutor automático (com um português de sotaque brasileiro) que deu logo provas do bom humor que tempera, ao vivo, canções frequentemente sombrias.
As confidências ao público foram, de resto, constantes, e tanto incluíram pormenores sobre a origem de alguns temas como episódios de Feist em Portugal. Mas as declarações de amor a Lisboa impuseram-se como especialmente notórias desde o arranque até ao encore, no qual a artista se mostrou sensibilizada com o carinho constante do público. E não precisou de se enrolar na bandeira portuguesa para convencer ninguém. Bastou-lhe a forma visivelmente emocionada como recordou as passagens pela capital, "cada uma sempre com mais algumas pessoas até conseguir chegar ao Coliseu", salientou com entusiasmo.
O prazer da contenção e da explosão
Num espetáculo que terá sido "o último durante um longo período de tempo", de duração generosa (mais de duas horas), a canadiana e os quatro músicos que a acompanharam (nas cordas, teclas ou bateria) foram moldando um crescendo emocional que, depois de "Pleasure" (a canção), a abrir, passou pela contenção de "The Bad In Each Other" ou pelo embalo de "How Come You Never Go There" (com a conterrânea Ariel Engle/La Force, responsável pela primeira parte do concerto, como voz convidada).
"Any Party", cuja letra incluiu uma dedicatória improvisada a Lisboa, "I'm not Running Away", tema que Feist confessou tê-la ajudado a reconciliar-se com o envelhecimento ("Também têm problemas com isso. Estão às escuras, podem admitir", provocou), e "I Wish I Didn't Miss You", que nem a constipação comprometeu, numa interpretação superior, comprovaram que o último disco convence na subida ao palco.
"Anti-Pioneer" (tema com um parto difícil e que saltou de "Let It Die e "The Reminder", assinalou a cantora) ou a imponente "A Commotion", também na primeira metade do concerto, asseguraram a relação natural das novas canções com as de "Metals". E o público acolheu-as com o respeito merecido. Mas seria "I Feel It All" a despoletar o primeiro grande momento de agitação generalizada, à medida que alguns espectadores se foram levantando das cadeiras para dançar e acompanhar a canção com palmas (incitadas pela mestre de cerimónias, tanto aí e como noutros momentos mais ritmados).
O apelo à dança contagiou boa parte da sala, numa das cenas mais efusivas da noite e que teve continuidade na tensão de "Sealion", com tons escarlate a dominarem o palco (nota para um rigoroso trabalho de iluminação ao longo de todo o concerto, sempre capaz de agarrar as cores de cada tema e a tornar dispensável qualquer adereço cénico). Aqui, Feist envolveu o público num mantra que ficou entre os grandes momentos de comunhão, embora "My Moon My Man" o possa ter superado com uma versão mais abrasiva, que deu à cantora o único foco de luz numa sala então entregue à escuridão - mas que em nada impediu o contágio de gritos e aplausos.
Amores e amigos
"The Limit to Your Love", canção que se tornou mais popular na voz de James Blake, e "Let It Die" apostaram numa vertente mais aveludada. Já o final do concerto reforçou a introspeção inicial com Feist sozinha em palco, apenas acompanhada de uma guitarra (depois de ter tocado várias, tanto elétricas como acústicas, durante da atuação).
"So Sorry", a inaugurar o encore, foi dedicada a Mocky, velho amigo e cúmplice de grande parte das canções de Feist. O tema de abertura de "The Reminder" foi o primeiro composto pela dupla, explicou a cantora, que assinalou ainda que o músico a ajudou a descobrir o seu encantamento por Lisboa - no caso dele, a paixão foi tão grande que optou por se mudar para a capital portuguesa. Outro amigo, Chilly Gonzales, teve direito a homenagem em "Gatekeeper". "O novo álbum dele saiu esta semana e é muito bonito", aconselhou. "Lembrei-e porque compusemos este tema juntos".
Para a despedida, Feist realçou que reencontrar uma canção pode ser tão estranho e marcante como rever um velho amigo ao fim de dez anos. Essas mudanças de vida e de perceção inspiraram uma versão folk de "1234", single que terá sido a maior rampa de lançamento para a canadiana na década passada. Mas se a cantora começou por revisitar o tema sozinha, a meio voltou a ter a companhia da banda, que direcionou a canção para o seu formato mais reconhecível. E o público deu uma ajuda nos coros, com Feist a coordenar o canto dos espectadores consoante a sua posição na sala - da plateia aos balcões. Resultado: outro acesso de euforia geral. "Obrigada", repetiu. "É das poucas coisas que sei dizer em português, por isso estou sempre a repeti-la", esclareceu. Mas quem canta assim (com ou sem constipação), e com uma banda e alinhamento à altura, nem precisa de dizer mais nada...
Fotos: Ana Castro
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