"Estou bastante curioso de ir lançar o livro a Brandoa”, diz Fernando Ribeiro ao SAPO Mag. Relato algo cáustico, por vezes delirante, certamente poético, de um bairro que ainda hoje ecoa no imaginário português sob um viés não muito positivo. O artista saiu de lá – e com ele todos os músicos que fundaram os Moonspell, a banda de metal portuguesa mais bem-sucedida internacionalmente.

Em “Bairro sem Saída” (edição da Penguin Books, chancela Suma de Letras), o músico revisita os lugares da infância e da adolescência, embora longe de produzir um livro de memórias – dedicando-se antes a um trabalho criativo sobre elas e à exploração de uma espécie de “mitologia da Brandoa” com ferramentas de realismo mágico.

Caos urbano-rural

O cantor dos Moonspell descreve um bairro onde a própria ocupação histórica e a geografia são muito particulares. Num primeiro aspeto há uma silhueta urbana, com prédios construídos à noite, sem planeamento, sem autorização, sem saneamento. “Depois davas duas passadas para o lado ou andavas 100 metros para a frente e já havia campo, matagal, flores, hortas. Sempre houve uma confluência muito grande entre o campo e a cidade”, relembra.

Ao excitar a imaginação dos rapazes que corriam pelas ruas fora estava a "fábrica dos ossos". “Para nós era envolta num grande mistério, não sabíamos o que se fazia ali – e, de certa forma, foi aí que surgiu ‘O Bairro sem Saída’”, diz. Aparentemente, num registo já bem menos “mágico”, tratava-se de uma fábrica de refinação de açúcar, onde se fazia gelatina e moíam-se ossos.

Realismo mágico

Conforme relata o músico, uma das grandes forças por trás do livro foi transformar o seu fascínio pela Brandoa em algo criativo. Inicialmente a forma como trabalhou as figuras verdadeiras e quase “míticas” que compõem a história do bairro chegava perto do “realismo mágico” – na melhor tradição de Gabriel García Márquez.

“Claro que, com o tempo essa mística vai desvanecendo, mas a Brandoa não deixa de ser, ainda hoje, um lugar que eu visito. Há várias sensibilidades em relação a viver num bairro assim. Há pessoas, por exemplo, que têm vergonha. Eu, que agora vivo em Alcobaça por ser a terra da minha mulher, sinto-me completamente em casa na Brandoa, sei onde se compra o melhor queijo, a melhor fruta. Eu quis contar a história de alguém que está em casa mas quer sair, depois não consegue e, no fim, já não quer”, explica.

De uma forma geral, o livro é uma grande mistura de personagens e situações que realmente existiram, mas exploradas artisticamente de uma forma completamente livre. Será especialmente divertido aos moradores tentar identificar a origem das histórias e personagens. De resto o protagonista, Rogério Paulo, é um exemplo deste caráter imaginário – mas com um pé na autobiografia. O seu objetivo essencial, muito típico de um adolescente, “é fazer sexo”. Mas, ao mesmo tempo, é um observador que tem a bagagem de quem escreve e é um grande observador do local no qual vive”, reforça.

Livros e “heavy metal”

Fernando Ribeiro conta que houve uma altura em que uma pessoa que não saísse da Brandoa era considerado um falhado, um “loser”, porque não conseguia sair dali, porque viver num bairro degradado é não ter ambição.

“Como a minha vida andava um bocado ao sabor do acaso, eu pensava em ser professor e fui estudar filosofia. Entretanto apareceram os Moonspell na minha vida. Eram todos de lá, ensaiávamos lá, com muitas dificuldades porque ninguém entendia a nossa música", recorda.

Por falar em “heavy metal”, é de se supor que existam enormes diferenças entre o meio musical e a literatura – tanto no processo de criação quanto na relação com o público. “Para mim sempre foi tudo um bocado misturado”, analisa.

“O ‘heavy metal’ tem muito de literatura, tem as coisas mais subtis do gótico, por exemplo. Eu nunca quis apaziguar essa confusão na minha cabeça”. Ao mesmo tempo, salienta que há o contraste entre a experiência direta com o público e a forma mais íntima e confessional da vivência literária.

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