Como disseram à Lusa dois escritores de língua portuguesa marcados por este argentino, cujo bisavô era português e cuja obra inclui ficção (sobretudo contos e narrativas curtas), ensaio e poesia, Borges é uma figura tutelar.

Nascido em Buenos Aires a 24 de agosto de 1899, Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo, um voraz leitor de enciclopédias desde a infância que, aos sete anos, comunicou ao pai que seria escritor, estudou na Suíça e em Espanha, regressando à capital argentina em 1921, altura em que começou a publicar poemas e ensaios em revistas literárias surrealistas.

Bibliotecário e professor na universidade pública antes de ser nomeado, em 1955, diretor da Biblioteca Nacional da República Argentina e professor de Literatura na Universidade de Buenos Aires, é por muitos considerado “um escritor de escritores” e uma referência quase universal, um nome inquestionável do cânone ocidental.

No entanto, no seu livro intitulado “O Cânone Ocidental”, o prestigiado professor e crítico literário norte-americano Harold Bloom menoriza-o, afirmando mesmo duvidar da sobrevivência estética do autor de “O Livro de Areia”.

Em contraste com a lista de canónicos de Bloom, que pode ser facilmente contestada, é acertada a sua ideia de que “a mais profunda verdade sobre a formação do cânone secular é que [ela] não é feita nem por críticos nem por académicos, e muito menos por políticos”.

Para Bloom, o cânone é feito pelos próprios escritores à medida que “a ponte entre fortes precursores e fortes sucessores” é estabelecida na intrincada cadeia da angústia da influência. No caso de Borges, essa influência originou até um adjetivo: borgesiano.

Eleito pela revista Granta um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros, Julián Fuks, de 35 anos, cujo mais recente romance, “A Resistência” (Companhia das Letras), foi este ano publicado em Portugal e que acabou de ser escolhido pelo Prémio Camões Mia Couto para um projeto em que o escritor moçambicano será seu mentor, é contundente: “Não será exagero dizer que Borges foi, para mim, um autor inaugural”.

“Com ele conheci a outra face da literatura, aquela que não é feita de simples narrativas, enredos cativantes, tramas convidativas. Com ele aprendi que a literatura podia ser reflexão sobre a literatura, podia pensar a si mesma e assim se fazer mais forte, mais crítica, mais rica”, disse à Lusa.

“E assim, como se quisesse conquistar apenas pelo pensamento, nunca pela sedução fácil, assim Borges me seduziu. Suas reflexões sobre o tempo, a imortalidade, a memória, capturaram de partida a minha mente; mas sem pudor devo admitir que também algo de mais íntimo se deixou levar pelo que há de material em sua estética, por sua poética de espelhos e labirintos”, sublinhou.

Por sua vez, o escritor português Afonso Cruz, assumido borgesiano, autor de romances como “A Boneca de Kokoschka” (Quetzal), que lhe mereceu o Prémio de Literatura da União Europeia, “O Pintor Debaixo do Lava-Loiças” (Caminho) e “Para Onde Vão os Guarda-Chuvas” (Alfaguara), entre outros, observou que “é raro não haver uma citação de Borges num encontro de escritores”, porque “alguns dos seus contos, por terem um conteúdo filosófico e metafórico evidente, funcionam como uma espécie de leis da física ou da matemática aplicáveis às mais diversas situações”.

“Gosto especialmente, em Borges, do monumental labirinto cultural que criou, focando-se em temas tão diversos como a lógica, a mitologia, a literatura, a arte, a filosofia, o misticismo, construindo novas ideias, geografias, ciências e recuperando autores e pensadores marginais (esquecidos ou ignorados ou desacreditados) como Uspensky, J. W. Dunne, Hinton”, disse à Lusa.

A própria “Enciclopédia da Estória Universal” de Afonso Cruz, com cinco volumes já publicados – narrativas curtas organizadas alfabeticamente como entradas sobre os mais diversos temas, escritas por uma série de autores fictícios ou obscuros que remetem uns para os outros – é um exercício de estilo borgesiano. Borges é mesmo referido numa das entradas como sendo um de vários “deuses burlões”.

O autor de “O Aleph” dizia que a leitura deve ser um grande instrumento de felicidade; trinta anos após a sua morte em Genebra, onde viveu os últimos anos, já depois de cego, e onde está sepultado, a sua obra continua a fazer felizes muitos leitores pelo mundo fora.

Em Portugal, as edições sucedem-se: depois de a Teorema ter publicado em quatro volumes a sua obra completa e em mais dois as obras em colaboração com Adolfo Bioy Casares, agora, é a Quetzal que está a editar Borges em português, em pequenos volumes. “Ficções”, “O Livro de Areia”, “Biblioteca Pessoal” e “O Aleph”, são alguns dos títulos já nas livrarias.