Às dez horas de 1 de novembro, a espera chegava ao fim. Com os elementos fulcrais do ideário socialista projetados no pano de fundo (que lentamente se transmutariam para os membros da banda), o sexteto bracarense subia ao palco do Incrível Almadense ao fim de 21 anos (a última vez tinha sido a finalizar a digressão de “Mutantes S1”) para dar mais uma demonstração de vitalidade e, acima de tudo, pertinência nos tempos que correm.
É difícil não resvalar para uma série de lugares comuns com o concerto do Reverence Valada ainda tão presente na memória, mas cada performance dos Mão Morta é um evento que vale a pena ser presenciado por si só, pelo que facilita a sua reportagem.
Dando logo prova dessa singularidade que caracteriza cada concerto, os Mão Morta arrancaram com a deambulação lúgubre de “Irmão da Solidão” para deslindar a primeira surpresa da noite, “Quero Morder-te as Mãos”. O som, não estando perfeito, foi portentoso o suficiente para corporizar a autodestruição prazerosa embutida em letras como “quero matar e morrer”, imediatamente acompanhada de mosh pelos fãs mais sedentos de movimento e violência. Contudo, a verdadeira violência que se sente num concerto de Mão Morta está nas sílabas proferidas por Adolfo Luxúria Canibal, sendo esse sentimento exponenciado pelo mais recente álbum, “Pelo Meu Relógio São Horas de Matar”.
Com uma provável presença marcada nos tops deste ano, este implacável raio-x ao Portugal de agora serviu de pano de fundo para os Mão Morta tocarem Histórias da Cidade, tema (estreado ao vivo na noite anterior, no Porto) que relembra um período onde o povo se sentia dono do seu destino. Esse saudosismo deu rapidamente lugar à cruel realidade evocada em Pássaros a Esvoaçar, alegoria para o desemprego flagelante, e que contou com um Adolfo arrepiante, de pose fantasmagórica com a mão estendida para o público enquanto o requiem instrumental decorria.
Se os estados de espírito não tivessem ainda batido no fundo, “Hipótese de Suicídio”, mais tarde, daria a estocada final com contundência, apontando para a morte como fuga para uma vida sem cor ou luz.
A noite, contudo, não se fez apenas de material novo, havendo espaço para resgatar temas daquele que é considerado o seu magnum opus, Mutantes S21. Se a decadência dramática de “Berlim” (com direito a um extraordinário jogo de luzes) e as Ramblas de “Barcelona” costumam figurar o alinhamento dos Mão Morta, saudaram-se a revisita rock’n’rollada a Budapeste e o retorno a uma ainda sombria e atolada de lixo “Lisboa” (com Adolfo a lembrar os tempos das “tetas ao léu, ele que já anteriormente tinha desafiado “quando quiserem começar a despirem-se, não se façam rogados”).
O retorno dos Mão Morta à margem sul teria sido imaculado não fosse uma ironia, talvez digna apenas das grandes bandas. Ditou o destino que os Mão Morta voltassem no dia 1 de Novembro, que é de Todos-os-Santos, mas, mais do que isso (que de divindades os bracarenses dispensam), data que dá o seu nome e serve de inspiração para um dos seus mais emblemáticos temas. Teria sido a ocasião perfeita, denunciada pelos cânticos feitos ao longo da noite pelo público, mas, devido a infelizes circunstâncias, Miguel Pedro, baterista de sempre, não pode acompanhar a banda nas duas datas, pois fracturou o braço. Rui Lacerda, a substitui-lo, portou-se muito bem com apenas dois ensaios em cima, mas o seu súbito recrutamento circunscreveu a banda a seguir um alinhamento estrito, tendo ficado “Anarquista Duval”, com um riff que continua um bulldozer, para sarar a desilusão.
Já na recta final, em registo encore, os Mão Morta presenteariam o Incrível Almadense com mais duas faixas de outrora. A febril “Velocidade Escaldante” foi guiada pelo triste piano de António Rafael até aos inícios revoltosos da banda com “Véus Caídos”. A sessão neurótica findou-se com “Pelo Meu Relógio São Horas de Matar”, hino militante direcionado para os adormecidos e indolentes, urgindo-os a agir contra aqueles que beneficiam da sua condição mísera. Com um Adolfo, qual líder da turba furiosa, a evocar palavras de ordem banhado de luz sanguinolenta e a restante banda (e público) a cantarolar a melodia marcial, dificilmente o conceto poderia ter acabado de melhor forma. Pode custar a muita gente, mas os Mão Morta ainda estão por aí, mais vitais e, aponte-se, mais atentos do que nunca.
Fotos @Rita Sousa Vieira
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