Albert Uderzo, co-criador da série de banda desenhada "Astérix" com René Goscinny, morreu esta terça-feira aos 92 anos.

"Albert Uderzo morreu em sua casa, em Neuilly, de um ataque cardíaco, não relacionado com a covid-19", disse Bernard de Choisy, genro do desenhador, à agência de notícias France Presse.

"Estava muito cansado, desde há várias semanas", acrescentou.

A morte do desenhador foi também confirmada por Aymar du Chatenet, presidente do Instituto René Goscinny e pela sua antiga editora Dargaud.

"Astérix" tornou-se numas das séries de banda desenhada mais populares de todos os tempos. Publicadas inicialmente na revista "Pilote" e posteriormente em álbum, as aventuras de Astérix tornaram-se um verdadeiro fenómeno de popularidade: ao longo das décadas, venderam-se cerca de 400 milhões de livros do guerreiro gaulês, o que o tornou a BD europeia mais vendida de sempre.

Ao mesmo tempo, principalmente nas décadas de 60 e 70, com a sua paródia inteligente e acutilante aos costumes da época, a série saiu das baias do público infanto-juvenil e tornou-se uma referência entre a intelectualidade europeia, sendo apreciada e discutida nas publicações de referência.

Para se ter uma ideia do impacto, logo em 1965, o primeiro satélite artificial francês lançado ao espaço é batizado de Astérix e em setembro do ano seguinte o herói gaulês surge na capa do "L'Express", com o título "O Fenómeno Astérix".

Nascido em 25 de abril de 1927, Albert Uderzo nasceu com doze dedos, anomalia que seria corrigida por uma operação.

Filho de um fabricante de violinos, teve uma infância em Paris modesta, mas feliz.

Daltónico, Uderzo descobriu o desenho na Société Parisienne d'Edition, que publicou "Les pieds nickelés"

Uderzo iniciou a sua carreira de artista em Paris depois da II Guerra Mundial, em 1945, com a aventura de capa e espada "Flamgerge" e as peripécias de "Clopinard", um pequeno idoso perneta que vencia todas as contrariedades. Em 1947-1948 criou personagens como Belloy e Arys Buck.

Em 1951, já com algum trabalho publicado, Uderzo conhece René Goscinny, que seria o seu principal parceiro criativo até à morte prematura deste em 1977.

Juntos criam séries como a do índio Humpá-Pá, João Pistolão e Luc Junior e juntos participam na criação da revolucionária revista "Pilote", em 1959, com Astérix a estrear-se logo no primeiro número.

Além de Astérix e Obélix, entre as personagens que povoam o imaginário criado por Uderzo e Goscinny contam-se ainda o druída Panoramix, o bardo Cacofonix e o pequeno cão Ideiafix, entre muitas outras.

Na mesma revista, Uderzo assegura ainda o desenho de outra série de BD mais realista, com argumentos de Jean-Michel Charlier: a da dupla de aviadores Tanguy e Laverdure.

O sucesso esmagador de Astérix levaria cada vez mais Uderzo a concentrar-se no desenho das aventuras do pequeno herói gaulês, que nos anos 60 começam também a ser transpostas para a animação de longa-metragem, num esforço de produção significativo para a ainda incipiente indústria do desenho animado da época em França.

O irredutível guerreiro gaulês apareceu pela primeira vez em Portugal, nas páginas da revista Foguetão, no dia 04 de maio de 1961. Foi publicado ainda em revistas como Cavaleiro Andante, Zorro, Tintin, Flecha 2000 e Jornal da BD.

Portugal foi o primeiro país não francófono a publicar as aventuras do pequeno gaulês e do seu amigo Obélix, na defesa da irredutível aldeia contra as tropas romanas de Júlio César, com a ajuda de uma poção secreta.

Em 1967, foi editado o primeiro álbum de Astérix em Portugal: "Astérix, o Gaulês".

Em 1977, com o falecimento inesperado de Goscinny, que assinava também os argumentos das aventuras de Lucky Luke, Uderzo começou a assinar os álbuns de Astérix como autor completo.

Nos 35 anos seguintes, assinaria a solo cerca de uma dezena de novos álbuns de Astérix que, apesar de um recepção cada vez menos favorável da crítica, se mantiveram sucessos de venda esmagadores, a ultrapassar no respetivo ano de publicação os números dos outros lançamentos literários, independentemente dos géneros e das origens.

"Não me foi dado nenhum presente. Claro que sofro de um complexo ‘Goscinny’, mas também fui criado com ele", disse Uderzo, quando tinha em mãos a edição das obras, dirigindo-se à imprensa, cuja crítica considerou os seus álbuns inferiores aos produzidos em conjunto. Ainda assim, tornaram-se um grande sucesso junto do público.

Tal como Hergé em relação a Tintin, Uderzo não queria nenhum novo Astérix após a sua morte, mas acabou por mudar de ideias e, em 2011, sofrendo de artrite reumatoide na mão direita, passou o testemunho a autores mais jovens - os desenhadores Frédéric e Thierry Mébarki e o guionista Jean-Yves Ferri -, enquanto acompanhava de perto o seu trabalho, que foi mais uma vez coroado de sucesso.

"Estou um pouco cansado, os anos passaram e pesam", disse então. "Decidi deixar isto a autores mais jovens, que têm talento suficiente para que as personagens sobrevivam", afirmou Uderzo, então com 84 anos.

"A minha mão não foi feita para este trabalho" - acrescentou – “Olha para as ‘patorras’ que eu tenho! São mãos de açougueiro, tenho ossos grandes, como o meu pai. Eu fiz todos os meus desenhos com um pincel, o que requer muita habilidade”.

"As pessoas não me reconhecem na rua. Eu poderia passar por trás de um cartaz sem o descolar. As personagens podem tornar-se mitos, mas nós, os seus pais, não", disse o coinventor do rival mundial de Tintin e Mickey.

Com o peso dos anos, com equilíbrio e desapego, Albert Uderzo acabou por permanecer um homem pouco conhecido, com um caráter reservado e um comportamento tranquilo, preferindo falar de seu trabalho do que de si mesmo.

Grande entusiasta da Ferrari - passaram cerca de vinte pela sua garagem -, este filho de um casal de imigrantes italianos em França viveu numa mansão em Neuilly-sur-Seine e era rico graças aos lucros da sua obra.

Nas últimas décadas, o fenómeno em redor de Astérix não esmoreceu: os filmes para cinema multiplicaram-se (além das produções em animação estrearam-se quatro filmes em imagem real de imenso sucesso, com Gérard Depardieu como Obélix) e em 1989 abriu em França o Parc Astérix, que atrai anualmente mais de dois milhões de visitantes.

As histórias sobre a pequena aldeia gaulesa rebelde, que resiste à Roma do imperador Júlio César, venderam perto de 400 milhões de exemplares em todo o mundo e estão traduzidas em mais de 107 línguas e dialetos, incluindo a língua mirandesa.

O mais recente livro de Astérix saiu em outubro de 2019, com o título “A filha de Vercingétorix”, uma jovem adolescente que se juntou a Astérix e Obélix.

À margem da ficção, a realidade tem sido bem mais polémica, com disputas em tribunais pelos direitos da milionária coleção e o fisco francês a exigir este ano a Uderzo mais de 200 mil euros, considerando-o apenas ilustrador e não coautor dos 24 álbuns iniciais.

Em Portugal, a editora ASA tem sido nos últimos anos a responsável pela publicação das histórias de Astérix.

Notícia atualizada às 12h40