"Virgem mãe de Deus, enxote Putin!", apelaram as Pussy Riot num dos momentos-chave da sua estreia em palcos lisboetas, um dia depois de terem atuado na Casa da Música, no Porto.

Esta oração particular não é nova, e tem sido repetida pelo coletivo feminino russo pelo menos desde que os seus elementos chegaram às manchetes internacionais há dez anos, quando a gritaram sem pedir licença na Catedral de Cristo Salvador, em Moscovo. Foram "40 segundos de crime", descreveu o grupo ao recordar esse polémico momento de viragem no espetáculo que apresentou em Portugal, integrado na digressão europeia.

Pussy Riot
créditos: Estela Silva/Lusa

Espetáculo será, de resto, um termo mais apropriado do que concerto para definir a proposta. Banda ativista e feminista que começou por se expressar enquanto agrupamento teatral antes de ganhar fama internacional através da música, as Pussy Riot trouxeram um manifesto multimédia que deveu tanto à presença dos artistas (contou com seis elementos) como às imagens de arquivo que ajudaram a contar a sua história num ecrã ao fundo do palco, perante o público atento e curioso de uma sala composta.

Com legendas em português (ainda que na versão brasileira) a traduzir as palavras disparadas pelo grupo, sobretudo por Maria 'Masha' Alekhina, a noite desenvolveu-se como um filme baseado numa história verídica, contada na primeira pessoa e sempre com um casamento entre documentário e thriller enquanto género híbrido de eleição.

Pussy Riot
créditos: Estela Silva/Lusa

Baseado numa história verídica

Capítulo a capítulo, o relato inspirado no livro "Riot Days" (publicado em 2018 e centrado no percurso do coletivo) foi variando entre o thriller de ação, o thriller judicial ou o thriller prisional, à medida que o coletivo foi revisitando a sua oração peculiar e o consequente processo de detenção, julgamento e condenação (a dois anos de cadeia por "vandalismo motivado por ódio religioso").

Durante cerca de uma hora, houve contrastes sucessivos numa performance que arrancou em modo (deliberadamente) rígido e terminou de forma explosiva, entre gritos e artistas que tanto saltaram como rastejaram - e com uma das Pussy Riot a apresentar-se em tronco nu e com o rosto coberto. Pelo meio ouviram-se uivos e sirenes, decorreu uma breve marcha fúnebre entre os espectadores das primeiras filas e foi atirada água ao público (que aderiu e respondeu à descarga progressiva de energia com aplausos, gritos e dança contida).

Pussy Riot
créditos: Estela Silva/Lusa

"Toda a gente fala do tempo. Nós não", garantiu Masha. E através de um discurso diarístico pontuado por vários slogans punk, insistiu em falar dos atentados à liberdade testemunhados no país que a renegou. Vladimir Putin foi habitualmente visado numa denúncia "em nome dos que não têm voz" que se atirou ao autoritarismo encorajador da promiscuidade entre o Estado russo e a Igreja Ortodoxa, da desigualdade de género, da perseguição de pessoas LGTBQIA+ ("Beijos? Gulag!") ou dos abusos a inúmeros prisioneiros políticos.

Música e palavra

"A liberdade não existe se não lutarmos por ela todos os dias", sublinhou a líder do coletivo, com a expressão dura e tensa que manteve ao longo de todo o espetáculo. Não houve grande espaço para sorrisos, o que não quer dizer que o humor tenha ficado de fora: tanto marcou a rebeldia de algumas danças circenses q.b. como a ironia com que as Pussy Riot recordaram a sua jornada, rocambolesca e toldada pelos absurdos do sistema que rejeitam.

Pussy Riot
créditos: Estela Silva/Lusa

Se a postura nunca deixou de contar com a irreverência e o apelo à ação do punk, a música nem sempre se limitou a essas paragens. Muito por culpa de Anton Ponomarev, saxofonista presente em grande parte do espetáculo (envergando um vestido vermelho), que abriu a sonoridade das Pussy Riot a diálogos com o jazz mais agreste e sujo. A presença do instrumento de sopro também lembrou a escola da influente banda punk feminina britânica X-Ray Spex, iniciada nos pioneiros anos 1970, mas outros momentos deixaram pistas do techno mais claustrofóbico e implosivo, fizeram pontes com o hip-hop mais experimental e não recusaram algum nervo noise. De fora ficou a aproximação a uma pop eletrónica facilmente digerível (mas pouco surpreendente) de canções recentes do grupo, embora isso até tenha jogado a favor de uma proposta mais imersiva, suculenta e desafiante, sustentada ainda pela bateria, teclados e programações.

A "mensagem" pesou e revelou-se fundamental, é certo, mas a música não foi descurada num protesto em que o amor acabou por ganhar ao ódio. "Ucrânia, amo-te", confessou Masha já no encore, vestido aí uma t-shirt de apoio ao país invadido pela Rússia. Parte das receitas do espetáculo reverteu, aliás, para a reconstrução de um hospital pediátrico em Kyiv. Porque além de abanar as estruturas, o punk também pode ser construtivo.

Nota: as fotos desta reportagem são do espetáculo da Casa da Música, no Porto