"Queria ficar aqui com vocês mais cinco horas, seis horas, até amanhã de manhã", confessou Ivete Sangalo perto do final do concerto, a fechar mais um regresso inevitável à Cidade do Rock. O sentimento terá sido recíproco, tendo em conta a agitação que a brasileira provou continuar a despertar junto do fidelíssimo público português.
Ao longo das suas nove edições, o Rock in Rio Lisboa convocou sempre a ex-vocalista da Banda Eva (em 2016, até a convocou mais de uma vez, quando a cantora substituiu Ariana Grande), ao ponto de o festival e a artista baiana se terem tornado indissociáveis.
Em 2022, a colaboração não acusa sinais de cansaço. Ivete Sangalo trouxe a energia, a entrega e os êxitos que dela se esperavam ("Abalou", "Sorte Grande", "Eva" ou "Arerê"), disparando-os ao lado de uma banda, de um coro e de bailarinos que reforçaram a sensação de adrenalina constante.
A festa foi complementada por um dueto virtual com Gloria Groove ou por formas geométricas coloridas em palco e animações no ecrã no fundo deste, mas o maior efeito especial de um espetáculo da cantora é mesmo a própria: uma constatação da qual dificilmente alguém discordará, identificando-se mais ou menos com uma música que não se esgota no axé (e para muitos, a artista é a rainha do género) nem de declinações da MPB. O funk foi motor de alguns momentos mais efusivos, às vezes complementado com piscares de olho à eletrónica mais dançável, em mais um atestado de profissionalismo que ajudou a tornar um regresso à Cidade do Rock praticamente certo. Venha então a décima edição...
Há umas luzes que nunca se apagam
A outra cantora a atuar em nome próprio no Palco Mundo, Ellie Goulding, não teve um efeito tão impactante, embora tenha conseguido deixar boa parte do público de braços no ar e com a luz do telemóvel a iluminar o recinto - no lugar que em tempos pertenceu a isqueiros - em "Love Me Like You Do" (canção que ganhou outros voos ao fazer parte da banda sonora do filme "As Cinquenta Sombras de Grey").
Guardado para o final do concerto, foi juntamente com "Lights" um dos momentos que despertou a atenção numa altura que terá sido, para muitos, a mais apropriada para jantar - depois dos espetáculos de David Carreira e Ivete Sangalo e antes da entrada em cena dos cabeças de cartaz Black Eyed Peas.
"Talvez conheçam esta, cantem comigo", incitou a britânica antes de "Burn", outro exemplo da sua pop de contornos eletrónicos que ajudou a fazer da reta final o segmento mais bem acolhido por parte de um público com muitos adolescentes (do sexo feminino, sobretudo) nas primeiras filas.
A fechar a noite no Palco Mundo, os Black Eyed Peas elevaram a profusão de telemóveis iluminados a outro patamar no seu regresso à Cidade do Rock (que já não visitavam desde 2004). Com single novo na bagagem, "Don't You Worry", colaboração com Shakira e David Guetta (ambos muito elogiados por will.i.am), revisitaram temas antigos, piscaram o olho a clássicos de Corona ("The Rhythm of the Night", integrada em "Ritmo (Bad Boys For Life)"), Madonna ("La Isla Bonita", recordada em "Mamacita") ou White Stripes ("Seven Nation Army") e não evitaram novas misturas em modo latino, aproveitando a ascensão do reggaeton.
Desta vez sem Fergie, que deixou o grupo em 2017 para se dedicar à maternidade, os norte-americanos apresentaram ao público português J. Rey Soul, a nova vocalista, acolhida sem reservas num recinto concorrido ao som de "Boom Boom Pow". will.i.am, particularmente comunicativo, agradeceu o apoio à banda em ambas as formações, louvou a fase "de pura liberdade e felicidade" de Britney Spears (com quem colaborou em "Scream & Shout" e "Work Bitch") e nunca largou o telemóvel, com o qual filmou o espetáculo para uma transmissão em direto na sua conta de Instagram.
"Pump It" (tema que incorpora a esfuziante "Misirlou", de Dick Dale, eternizada na banda sonora de "Pulp Fiction"), acompanhado de pirotecnia, foi um dos primeiros momentos mais ovacionados, ao qual se seguiriam, mais à frente, "Where Is the Love?" ou "I Got a Feeling" (estranhamente com direito a repetição) como outros picos de adesão.
Se o efeito destes singles já seria expectável, a surpresa chegou quando will.i.am propôs voltar a "Don't You Worry", desta vez para rever o videoclip. "Vamos sentar-nos como se fôssemos uma família", apelou. E assim fez, ao lado de apl.de.ap, Taboo e J. Rey Soul, entoando a canção enquanto olhava para o ecrã ao fundo do palco. Um momento de calma relativa, conjugada com uma manobra de marketing sem grandes subtilezas, que não comprometeu um dos maiores casos de adesão generalizada desta edição do festival até agora.
Quando vale a pena chegar cedo
E agora para algo completamente diferente... De Miami para a Cidade do Rock, os Magdalena Bay apresentaram a sua abordagem muito particular à pop eletrónica, que tem sido elogiada ao longo de vários singles, três EPs e um álbum ("Mercurial World", editado no ano passado).
A vocalista Mica Tenenbaum e o produtor Matthew Lewin - que ao vivo também assumiu os teclados, a guitarra e o baixo - surgiram no palco da Rock Your Street acompanhados de um baterista e ofereceram canções tão coloridas como as roupas que vestiam.
Compêndio de rebuçados com sabor house, electro ou disco, o alinhamento serviu singles como "You Lose", "Dreamcatching" ou "Follow the Leader" (interpretado com uma máscara de coelha), numa alternância de temas ora sussurrados e insinuantes, ora encorpados e a pedir uma bola de espelhos. "Three, four, down to the floor/ Lose control, little more", incentivou Tenenbaum na convidativa "Chaerie".
Só que ao contrário de um recinto repleto, como o do entardecer do dia anterior (nos concertos de Sara Correia ou Bombino), a banda foi acolhida por poucas dezenas de espectadores num horário ingrato, a partir das 15h30. Mas pelo menos um deles, sério candidato ao eventual troféu de maior fã, dançou junto ao palco durante toda a atuação. Já o grupo leva o galardão de segredo mais bem guardado do festival até agora, ao provar que não resulta apenas de ilusionismos de estúdio e sabe como transpor as suas canções para um palco. Incluindo um palco de um evento que tem rock no nome: Lewin agarrou-se à guitarra elétrica em "Good Intentions" para um final apoteótico, nada aquém da trepidação desenhada por muitos cabeças de cartaz.
Bem mais concorrido, o espetáculo de Bruno Pernadas confirmou a diversidade da programação da Rock Your Street. E esse ecletismo também é uma das características do caldeirão sonoro que tem marcado a discografia do compositor, produtor e multi-instrumentista lisboeta. "Private Reasons", o álbum mais recente, editado no ano passado, mantém a tendência e foi apresentado ao final da tarde, no formato big band que tem sido habitual na abordagem das suas canções ao vivo.
Encarregando-se da guitarra, Pernadas fez-se acompanhar de seis músicos, com uma formação que incluiu sopros (trompete, saxofone, pontualmente flauta), baixo, teclados e bateria, entregando o protagonismo vocal aos também instrumentistas Margarida Campelo e Afonso Cruz. Do jazz a ecos tribais, de temperos exotica a flirts com o space disco mais para o final (com direito a vocoder), a atuação mostrou uma banda coesa, cuja rodagem em palco é evidente, e à qual não têm faltado solicitações dentro e fora de portas.
Com as descargas de guitarra e trompete a gerarem alguns dos maiores pontos de ebulição, num contraste com temas mais lânguidos e planantes (e maioritariamente instrumentais, ou a utilizarem muitas vezes a voz como um instrumento), a viagem na qual embarcou um público expressivo e interessado terminaria com "Galaxy". E apesar do ecletismo recorrente até aqui, ainda há outras galáxias a explorar nesta discografia, assinalou o músico em entrevista ao SAPO Mag.
O Rock in Rio Lisboa 2022 regressa nos dias 25 e 26 de junho ao Parque da Bela Vista. Duran Duran, Anitta, Post Malone, A-ha e Bush são alguns dos nomes que atuam no segundo fim de semana da nona edição do festival.
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