O “superpoder” do escritor reside no facto de “poder criar um registo para que o futuro o possa ler”, afirmou Salman Rushdie numa entrevista transmitida na quinta-feira pela RTP3 no programa “Todas as palavras”.
“Se considerarmos os escritores que foram perseguidos, o poeta Ovídio foi expulso por César para o mar Negro, mas a poesia de Ovídio sobreviveu ao império romano”, exemplificou o autor de “Versículos satânicos”.
Assim como a poesia de Federico García Lorca “sobreviveu ao fascismo espanhol” apesar de o poeta ter sido “assassinado pela falange”, sublinhou o escritor nascido em Goa, em 1947.
Por isso, o que os escritores conseguem fazer “é sobreviver à coisa que se lhes opões”, frisou Salman Rushdie numa entrevista a propósito do seu mais recente livro, “Victory City”.
Publicado em fevereiro pela Random House, “Victory City” deverá chegar às livrarias portuguesas no final deste ano e é o primeiro livro publicado por Salman Rushdie desde que, em agosto de 2022, foi vítima de um ataque quando iniciava uma palestra literária em Nova Iorque.
Terminado um mês antes do ataque que o deixou cego de um olho e com uma mão incapacitada, “Victory City” gira em torno de uma menina de nove anos, Pampa Kampana, que dão origem a um império fantástico mas que acaba por ser consumida por ele ao longo dos séculos.
A narradora do livro é a personagem principal da história, que dura 247 anos, tantos quanto o império e que só será descoberta ao fim de 400 anos, indicou o escritor.
Vítima de um “trauma gigantesco” no início da vida, quando vê a mãe imolar-se, Pampa Campana é, todavia, abençoada por uma deusa.
A personagem principal do romance decide mudar o mundo fazendo com que as mulheres não precisem de se imolar.
Ao longo da história, Pampa Campana apaixona-se por dois homens, portugueses, que viviam na Índia e eram comerciantes de cavalos.
À semelhança do que fizeram os primeiros portugueses a estabelecerem-se na Índia, disse Rushdie, acrescentando que se dedicavam ao comércio de cavalos que transportavam do Golfo para a Índia, para venderem a príncipes.
Sobre a ação da história do novo romance, cuja ação decorre na Índia, Salman Rushdie admite ser “uma Índia diferente” para si.
Oriundo de uma família do norte da Índia, Salman Rushdie cresceu em Bombaim, e viajou mais pelo norte do país do que pelo sul, referiu.
Ainda antes de, em 1980, ter publicado “Os filhos da meia-noite”, que lhe valeu o Booker Prize, foi a um local conhecido por Hampi, onde se encontram as ruínas do império Vijayanagara, império Bisnaga, como lhe chama no livro, para onde remeteu a ação do mais recente título, depois de a dos últimos três títulos publicados se situar nos Estados Unidos.
O escritor cachou ser agora o tempo de fazer “algo que nunca tinha feito” pelo seu país, disse.
Há partes do livro em que a religião assume o poder, observou Salman Rushdie em “Victory City”, sublinhando que noutros períodos não se verificaram conflitos entre hindus e muçulmanos.
“É uma história complicada, não é simples. Não é apenas o Bem contra o Mal”, disse o autor de “Victory City”.
Nascido em 19 de junho de 1947 na Índia, Salman Rushdie terminou, em 1968, a licenciatura em História na Universidade de Cambridge.
Com o romance “Os filhos da meia-noite”, publicado em 1980, recebeu não só o Booker Prize desse ano mas também, em 1993, o Booker of Bookers para o melhor dos vencedores desse prémio num período de 25 anos.
Sobre a situação política nos Estados Unidos da América, o escritor disse acreditar que os democratas consigam vencer as próximas eleições norte-americanas.
“Creio que os bons poderão conquistar os indecisos”, frisou a propósito, acrescentando que um dos temas que concorrem a este favor é o das lutas pela conquista dos direitos das mulheres, como o do aborto.
Salman Rushdie considera, todavia, que o Presidente Joe Biden “é muito velho”.
O escritor considera ainda aterrador” o momento que o mundo atravessa nomeadamente a proibição de determinados livros e a reescrita de outros.
“Estão loucos na liderança de alguns estados, especialmente na Florida. Espero que seja um fenómeno de curta duração”, disse a propósito.
Mostrou ainda “alguma esperança” de que os tribunais consigam fazer valer a ideia de que a decisão de proibir livros é inconstitucional por violar a I Emenda, como é referido em vários processos judicias em curso.
Sobre Portugal, o escritor que é membro do Conselho Honorário do Espaço Atântida, presidido por Alberto Manguel, disse gostar do país onde esteve várias vezes.
Na última visita, foi fotografado no café em Lisboa que era o favorito de Fernando Pessoa sentado na mesma onde está a estátua do escritor e por debaixo do chapéu deste.
Salman Rushdie confessou ainda ser “um admirador imenso” de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, sobretudo de Ricardo Reis, que “é extraordinário”, concluiu.
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