A encenadora Fernanda Lapa disse à agência Lusa que há muito queria pôr em palco este texto, editado pela Seara Nova em 1971, ainda durante a vigência da Comissão de Censura, sem que até ao momento tivesse condições para o fazer.

E foi a possibilidade de a Escola de Mulheres, companhia que dirige, o coproduzir com o Teatro Municipal S. Luiz, que viabilizou a chegada da peça ao palco, cumprindo uma promessa que a atriz e encenadora fizera há muito ao autor, que morreu em 2006, acrescentou.

A peça “não é um discurso político”, mas cria uma situação “para que as pessoas se interroguem” já que ”muitas nem saberão o que se passou”, acrescentou a encenadora à Lusa a propósito das 36 horas que durou a invasão aos territórios portugueses na Índia -- Goa, Damão e Diu –-, por parte das tropas da União Indiana, nos dias 18 e 19 de dezembro de 1961.

“[Esta peça] não é um ajuste de contas, não é uma declaração de amor, é uma provocação. É uma provocação no bom sentido à análise de quem somos nós, Portugal, da nossa identidade, e isso passa pela Índia também”, acrescentou a encenadora, em entrevista à agência Lusa, no final de um ensaio de imprensa.

A construção das personagens, “que são riquíssimas, fortíssimas, o conflito, o conflito latente, e depois a situação histórica real, que aconteceu no princípio do fim do império colonial português", são, segundo Fernanda Lapa, alguns dos fatores que a encantam neste texto do escritor Orlando da Costa, pai do atual primeiro-ministro.

Tal como a encantam o “realismo das personagens da família, do núcleo familiar, e depois a intervenção um bocado onírica, um bocado poética do que está lá fora, deste coro de goeses que irrompe pela cena. Uma cena naturalista, quase”, acrescentou.

A peça –- que nunca fora representada –- centra-se numa família brâmane e católica de Goa, que se confronta com seus fantasmas e medos.

Ao mesmo tempo que a tensão e o clima dramático sobem no seio desta família, numa casa onde o clima se torna irrespirável por via dos confrontos das personagens – que vão do amor, ao ódio – Orlando da Costa transpõe para o agregado familiar os medos decorrentes da tensão que atinge o exterior.

E à medida que o medo aumenta face à invasão das tropas da União Indiana nos então territórios da chamada Índia Portuguesa, o autor faz corresponder o aumento da tensão entre as personagens da peça fazendo com que cada uma atinja o limite das suas forças.

Trinta e seis horas foi o tempo que durou a invasão de Goa, Damão e Diu, facto histórico que marcou o princípio do fim do colonialismo português e que também é tratado nesta obra que Fernanda Lapa põe agora em palco, passados 58 anos.

Esta peça é encenada dois anos depois de o livro ter sido traduzido para inglês e lançado na Índia, em janeiro de 2017, com a presença de António Costa, um dos filhos do autor.

“Não podemos dizer que é uma peça realista, não podemos dizer que não é uma peça realista, mas aborda a realidade, sim”, sublinhou Fernanda Lapa a propósito de “Sem flores nem coroas”.

A realidade está patente nas falas da principal personagem masculina que, a determinada altura, refere que o ideal seria atribuir um estatuto de autonomia àqueles três territórios, que também não se sentiriam muito bem com o colonialismo português.

E são precisamente as notícias que vêm de fora da ação – as que dão conta da chegada das tropas da União Indiana – que espoletam sentimentos ocultos nas personagens, sobretudo nas femininas.

A mesma tensão que faz com que a mulher do chefe de família brâmane vá tomando consciência do seu papel, deixando de ser uma mulher submissa como fora até aí.

A vinda de um jovem para junto desta família, ao mesmo tempo que as tropas da União Indiana se preparam para invadir Goa –- facto a que mãe e filha não dão relevo, mas que para o pai representa o inimigo, já que vai “desestabilizar completamente tudo” –-, é outro dos fatores que leva ao aumento de tensão entre as personagens.

Uma trama “muito bem urdida” sem que seja “óbvia”, assegura Fernanda Lapa sobre a ação de “Sem flores nem coroas".

Filho de uma família goesa brâmane e católica, Orlando da Costa nasceu em Maputo, em 1929, e morreu em Lisboa, em 2006.

Pai do jornalista Ricardo Costa, Orlando da Costa é autor de uma trilogia sobre Goa: “O signo da Ira” (1961), “O último olhar de Manú Miranda” (2000) e este texto sobre a invasão da Índia.

Para Fernanda Lapa, pôr esta peça em palco era “um dever”. Pela “amizade” que nutria pelo autor e pela “importância” do tema, disse à Lusa.

“Sem flores nem coroas” vai estar em cena na sala Luís Miguel Cintra, do Teatro S. Luiz, em Lisboa, até 19 de janeiro, com espetáculos às quartas, sextas e sábados, às 21:00, às quintas-feiras, às 20:00, e, aos domingos, às 17:30. Após o espetáculo de 19 de janeiro, a equipa de criadores terá uma conversa com o público.

Com dramaturgia e encenação de Fernanda Lapa, “Sem flores nem coroas” tem espaço cénico e figurinos de António Lagarto, e Marta Lapa na assistência de encenação e movimento.

O desenho de luz é de Paulo Santos e, a fotografia, de Margarida Dias, enquanto ao piano vai estar Nuno Vieira de Almeida.

A interpretação é de João Grosso, cedido pelo Teatro Nacional D. Maria II, Margarida Marinho, Carolina Amaral, Pedro Russo, Elsa Galvão e Rita Paixão.

No coro estão Afonso Abreu, Carlota Crespo, Joana Silva, Juliana Campos, Martina Costa, Nelson Reis, Pedro Monteiro, Tiago Becker e Vítor de Almeida. O coro infantil conta com Carolina Amaral e Mónica Lapa.

A peça conta com o apoio de, entre outros, Direção Geral das Artes, Câmara de Lisboa, Fundação Oriente e Casa de Goa.

Tudo o que se passa à frente e atrás das câmaras!

Receba o melhor do SAPO Mag, semanalmente, no seu email.

Os temas quentes do cinema, da TV e da música!

Ative as notificações do SAPO Mag.

O que está a dar na TV, no cinema e na música!

Siga o SAPO nas redes sociais. Use a #SAPOmag nas suas publicações.