"Há anos que digo que iríamos ter um criminoso como presidente. Chegámos lá", assinala Terry Gilliam em entrevista à AFP, por ocasião da estreia em Paris da ópera "Benvenuto Cellini", que dirige.

Para este iconoclasta que renunciou em 2006 à sua nacionalidade norte-americana para protestar contra a política de George W. Bush, a presidência de Donald Trump é digna de um espetáculo de stand-up.

"É absurdo", diz ele, sentado numa sala de ensaio na Opéra Bastille, onde sua a versão da ópera de Hector Berlioz estará em cartaz de 17 de março a 14 de abril.

"Não acho que pudéssemos fazer [um sketch sobre Trump], a realidade de hoje é mais divertida!", garante o ex-elemento dos Monty Python.

"Para alguém que gosta de agitar as coisas, deve ser divertido porque ele muda tudo. Mas é um idiota", acrescenta, com um tom mais sério.

'Apolítico' 

"Tenho a impressão de viver num mundo de pesadelo neste momento, é estranho", afirma o realizador conhecido pelas suas montagens surrealistas com os Monty Python e pelos seus filmes de humor negro ("Brazil: O Outro Lado do Sonho" ou "12 Macacos").

"O mundo está tão louco que não podemos fazer nada. Tornei-me apolítico", sorri, afirmando estar chocado com o Brexit.

O ex-humorista de 77 anos e cabelos grisalhos, comenta, no entanto, os debates que agitam o mundo, incluindo o escândalo Weinstein.

15. Monty Python and the Holy Grail (Terry Gilliam and Terry Jones, 1975)

"Ele é um monstro, um bastardo", diz o ex-comediante sobre o produtor norte-americano acusado de assédio, agressão sexual e violação. "Mas o debate tornou-se muito simplista, tornou-se um mundo de vítimas", considera.

"Há pessoas que beneficiaram disso. Conheço mulheres que foram atrás de Harvey e que não eram vítimas", aponta.

Voltando a Trump, Gilliam diz "achar 'engraçado' que alguém que se diz um 'pussy graber' [pessoa que agarra na genitália das mulheres] se mantenha tranquilo. É impensável", sublinha em referência às declarações obscenas contra as mulheres proferidas pelo presidente norte-americano.

'Livro de Dom Quixote' 

O realizador diz que odeia "acima de tudo" que as pessoas agora tenham medo de dizer o que pensam: "Sinto pena por alguém como Matt Damon, que é um homem digno e que quando disse 'nem todos os homens são violadores', foi completamente massacrado".

Embora  esteja politicamente desiludido, Gilliam diz-se "aliviado" do ponto de vista artístico. O seu filme amaldiçoado, "O homem que matou Dom Quixote", cujas filmagens foram adiadas por mais de 20 anos por problemas de dinheiro, saúde e clima, será lançado em breve.

Monty Python

"Estou livre!", exclama. "Fui prisioneiro de Dom Quixote durante 25 anos. (...) Tive medo de decepcionar, mas não é decepcionante", assegura sobre este filme dedicado à memória de Jean Rochefort e John Hurt, que interpretaram o herói de Cervantes.

Hoje, Terry Gilliam quer estar "obcecado com outra coisa sem saber bem o quê".

"Há filmes que quero fazer, talvez um musical ... talvez faça uma nova casa", brinca.

O realizador não aborda muito aos anos dos Monty Python, cujas sátiras considera "visionárias" e "totalmente relevantes" ainda hoje.

Gilliam, cujos filmes muitas vezes denunciam o consumo excessivo, a burocracia e o controlo das mentes, com a imaginação como o único meio de escape, diz-se pessimista. Mesmo que, paradoxalmente, guarde a vontade de acreditar num mundo melhor. "Vou cultivar o meu jardim, é o que eu vou fazer ...", comenta o artista que "não consegue acreditar que já tem 77 anos".